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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Lições Éticas – ( Ernest Tugendhat )

 

1. ESPECIFICAÇÃO DO REFERENTE UTILIZADO:

Fazer Ficha de leitura modelo Ficha resumo/analítica de obra científica da seguinte obra: TUGENDHAT, Ernest. Lições éticas. 2° ed. Rio de Janeiro. 1997.

2. RESUMO DO LIVRO

DIREITOS HUMANOS

Desde a quinta lição precedente sustentei e tentei mostrar que a moral do respeito universal e igualitário é a única moral que pode ter uma pretensão plausível de realizar a idéia de um ser humano bom (parceiro de cooperação). Nisto esta implicado que o comportamento moral consiste em reconhecer o outro como sujeito de direitos iguais; isto significa que as obrigações que temos em relação ao outro correspondem por sua vez direitos. (p.362).

Até o momento, porém, não esclareci o que isto significa. Estamos autorizados – assim pode-se perguntar – a aceitar que aqueles em relação aos quais temos obrigações tem algo como direitos correspondentes (ás obrigações)? O que significa ter um direito? (p.362).

Por juízos de moral política compreendo aqueles nos quais se decide sobre o ser bom e ser mal de um Estado, de maneira análoga como em juizes morais sobre indivíduos: também aqui os termos “bom” e “mau”, ou as correspondentes palavras de necessidade prática, serão empregados no sentido “absoluto”, como elucidei anteriormente. Também estes juízos são de maneira análoga fundamento para emoções morais, ao menos para o sentimento de indignação. (p.363).

Não seria mais correto construir a moral em geral sobre o conceito de direito subjetivo, em vez dos conceitos fundamentais do kantismo e do utilitarismo, o conceito das obrigações e o da utilidade coletiva. Mas esta oposição só faz sentido em relação ao utilitarismo. Designa-se, mormente o utilitarismo como uma moral teleológica, e é orientada para algum fim (objetivo) (do grego telos), e aqui agora de fato pode-se dizer que, em relação a isto, uma moral baseada em direitos representa uma clara oposição. (p.364).

A proposta de relacionar a moral com direitos é uma contraposição para o utilitarismo. A consideração dos direitos inalienáveis de todos é um conceito teleológico que esta em oposição ao conceito da utilidade coletiva (a ser ajustada entre os indivíduos). (p.364).

O conceito de obrigação moral baseia-se por sua vez no de uma determinada sanção; e o discurso sobre direitos ficaria no ar sem a correlação com o discurso de obrigação, assim definido. Formalmente só é possível construir o discurso sobre direitos com base no discurso sobre obrigações, e se, quanto ao conteúdo, o conceito do direito se demonstrasse como o primeiro, então isto – como ainda veremos – só poderia ter sentido de que a pergunta sobre as quais as obrigações que existem é resolvida a partir dos direitos e de que a um direito correspondem diversas obrigações, não existindo aqui uma correlação um – por - um. (p.365).

Para compreender o que afinal deve ser entendido por direito e, conforme isto, por direito moral, temos que – como primeira tarefa – nos entender a respeito do sentido daqueles direitos subjetivos que ainda não tem um sentido moral ou legal, ou em todo caso não precisam tê-lo. Fala-se aqui de direito especiais ou pessoais, em oposição aos direitos gerais, dos quais então se trata no direito e na moral. (p.365).

Dissemos anteriormente que direitos deste tipo são em si e por si pré-morais e pré-legais. Agora porem nos podemos esclarecer que os diversos tipos de obrigações podem sobrepor-se. Se consideramos moralmente mau quebrar uma promessa, então isso significa que existe uma obrigação moral não relativa, a saber: a de cumprir a obrigação relativa que temos para com aquele ao qual fizemos a promessa. (p.367).

O fortalecimento moral do direito especial dá-se por enquanto somente mediante a sobreposição da obrigação relativa pela obrigação moral. É uma situação bem análoga quando obrigações e direitos são fortalecidos através de uma sanção legal; (...). (p.368).

Os níveis moral e legal podem por sua vez sobrepor-se um ao outro. A norma moral e legal podem por sua vez sobrepor-se um ao outro. A norma moral “acordos tem que ser cumpridos” (no sentido moral do termo) pode tornar-se fundamento de uma correspondente norma penal, e o direito contratual, pode, inversamente, ser julgado moralmente. (p.368).

Isto nos conduz a importante distinção entre direitos especiais e direitos gerais. Faz sentido não só alicerçar os direitos especiais através de correspondentes direitos gerais, morais e ou legais, mas também de relacionar com direitos partes de outras normas legais, mas também de relacionar com direitos partes de outras normas morais e legais. (p.368).

Se eu tenho um direito moral ou legal sobre algo, teria que existir, assim parece, uma instância moral ou legal de cobrança. Como esta instância deveria ser pensada, é muito mais fácil de ser visto no direito do que a moral: ter um direito legal sobre algo parece singular que existe uma instancia jurídica junto a qual este direito pode ser cobrado. (p.368).

Desta maneira isso poderia sugerir que a relação com as pessoas, dada por ius ad rem, tivesse que ser compreendido de duas maneiras: como uma exigência para todos e como exigência ao Estado (como seu representante). Mas como deveria compreender este “e”? Além disso, não se confunde aqui uma compreensão especificamente legal e uma especificamente moral do ius ad rem? (p.369).

Contudo como se deveria compreender um direito moral sem uma instância de cobrança? Desta maneira poder-se ia pensar que uma compreensão da moral relacionada com direitos aponta por si mesma para uma realização numa ordem jurídica. O “todos”, aos quais se dirigiria a exigência moral – caso então se possa apoiar em direitos -, não seria apenas a comunidade moral, mas seria a comunidade enquanto se pode apelar a ela como a uma instância, a qual pode executar judicialmente o seguimento das normas morais. (p.369).

H. Bedau, para esclarecer o que significa falar dos direitos humanos, propôs num artigo, “International Human Rights”, comparar três modelos de sociedade na qual de modo algum se falaria de direitos gerais, mas somente das obrigações, como no Antigo Testamento. Aqui eu tenho que complementar que também uma sociedade desse tipo conhece a instituição da concessão de direitos especiais; nem sequer é possível pensar uma sociedade humana sem instituição. O segundo modelo de sociedade de Bedau já conhece direitos gerais, os quais contudo são concedidos pela ordem jurídica e estão vinculados a peculariedades e papeis específicos das pessoas em questão. Por fim no terceiro modelo de sociedade, todos os seres humanos, independente de todas as peculariedades e dos papeis específicos teriam determinados direitos simplesmente enquanto são seres humanos. (p.370).

Para acentuar o fato de que nos direitos morais se trata daqueles direitos que nós “temos”, e que não apenas nos são concedidos por alguma ordem jurídica, a primeira tradição moderna dos direitos humanos tem falado de direitos naturais. (p.371).

Um sentido compreensível podia ter esse discurso, na melhor das hipóteses, numa visão teleológica. Desta maneira diz na declaração da independência norte-americana, que todos os seres humanos foram “providos” por seu criador de “certos direitos inalienáveis”. (p.371).

A razão de esta concepção teleológica parecer de compreensão mais fácil decorre naturalmente do fato de que agora também os direitos que temos “por natureza” ou de “antemão” são concedidos: são concedidos por Deus. Mas afinal esta compreensão é também apenas uma aparência. Pois tanto nos direitos especiais quanto nos direitos legais é essencial que a instância que concede os direitos seja idêntica aquela junto a qual eles podem ser cobrados. (p.371).

Os direitos concedidos por Deus, contudo não podem ser cobrados junto a ele. Portanto, a concepção teleológica dos direitos humanos como instituídos por Deus somente pode ter o sentido de que Deus estabeleceu a ordem moral como um todo, é a humanidade como uma comunidade moral, cujos membros podem cobrar-se mutuamente esses direitos: ele teria criado todo o sistema dos direitos e das obrigações recíprocas. No entanto, os direitos estão somente teriam o seu sentido especifico enquanto direitos na medida em que membros da comunidade se reconheceram mutuamente. (p.371).

Uma metáfora enganadora parecida com a dos direitos com a dos direitos morais como direitos naturais é o discurso kantiano de um “valor absoluto” de todas as pessoas, recentemente assumido por G. Vlastos. Vlastos não fundamenta esta concepção do valor absoluto de todos os seres humanos; pensa, contudo que ela esta na base de nossa consciência de direitos humanos inalienáveis. (p.372).

Para Kant a concepção do ser humano como fim em si funda-se na razão; por isso ela não está tanto na base dos direitos e das obrigações morais do que ela se identificasse com a consciência de que estes (direitos e obrigações morais) existem, ou seja, se identificasse com a moral do respeito universal. (p.372).

Em Vlastos fica particularmente claro que o único sentido da introdução de valores absolutos consiste em apoiar os direitos humanos, é a moral do respeito universal. Mas não perdemos nada se simplesmente abandonamos a crença no valor absoluto. O sentido substancial desta crença permanece o mesmo, a saber, que reconhecemos todos os seres humanos como portadores de direitos. E agora podemos dizer mais claramente o que já foi sugerido na interpretação da concepção teleológica: que, na medida em que colocamos sob a moral do respeito universal, somos nós mesmos que concedemos a todos os seres humanos os direitos que dela resultam. Portanto também os direitos morais são direitos concebidos. A instância que os concede é – falamos kantianamente – a própria legislação. (p.373).

A moral perde a base que parecia ter enquanto se tinha a convicção de que ela foi instituída por Deus, pela natureza ou pela razão. Mas um tal apoio é naturalmente fictício. Mesmo que ele existisse, teria, contudo somente este sentido: se eu me sinto obrigado em relação à natureza ou a razão, então tenho que ser moral. Mas até que ponto deveríamos ter um motivo para nos reconhecermos como ligados, antes à natureza ou a razão ou a qualquer outra coisa do que a moral? Somente a concepção religiosa teria um sentido positivo. Mas ela pressupõe uma motivação, em ultima instância ordenada absolutamente. (p.373).

Com isto teríamos então assegurado em relação á unidade do conceito de direito: é ambíguo dizer-se que todos os seres humanos “tem” os direitos morais. Também os direitos morais são direitos concedidos, concedidos pela própria moral (ou, uma vez que também isto é ambíguo, são concedidos por nós, na medida em que nos compreendemos moralmente). De maneira mais precisa teríamos que dizer agora: se afinal existem direitos morais, então eles são dados desta maneira. (p.374).

Apenas depois que se decidiu de que depende a existência desses direitos, teremos um critério de julgamento para podermos esclarecer: primeiro, se eles afinal existem e, segundo, quais os direitos deste tipo que devem ser reconhecidos. (p.374).

Pois é a partir do critério de julgamento que se deve decidir se o discurso sobre direitos morais afinal pode ser desejado a partir deste ponto de vista é desejável que compreendamos os direitos morais também como direitos no sentido forte. (p.374).

A primeira questão é se afinal existem direitos morais. E para isto basta compreender o discurso um sentido fraco. Como fraco agora podemos designar aquele conceito de um direito subjetivo universal segundo o qual este não pode ser cobrado. (p.375).

Se reconhecermos o outro como sujeito de direitos, então o pensamos como tendo em suas mãos indefinidamente muitas rédeas invisíveis, nas quais estamos amarrados enquanto membros da comunidade moral e das quais, no caso, ele pode nos lembrar. (p.375).

Não obstante o conceito do direito esteja baseado no da obrigação, acontece que, quanto ao conteúdo, as obrigações resultam dos interesses e das necessidades e dos direitos que delas emanam: os direitos resultam das necessidades, se isto parecer como desejável num julgamento imparcial. (p.376).

A fraqueza peculiar do conceito de moral, como o apresentei antes, consiste nisto: aquele que tem o direito, de fato pode exigi-lo, mas não dispõe de nenhum instrumento para dar força a esta exigência além do apelo à ordem moral. As rédeas são constituídas de um material muito etéreo, enquanto que nos direitos especiais pode-se ao menos dar força a sua exigência, considerando que de outra forma se quebraria o jogo, e nos direitos legais a sanção já é de si pública. (p.377).

O direito moral pode, portanto, ser perfeitamente compreendido no sentido forte, mas somente de tal maneira, que daí resulte uma obrigação moral coletiva, uma correspondente instância jurídica a ser institucionalizada. (p.377).

Os direitos humanos são compreendidos nesta tradição primeiramente como direitos de defesa face as intervenções do Estado, e só com muita hesitação são também compreendidos como direitos universais à proteção. Isto somente pode ser compreendido a partir da história pré-revolucionária do aparecimento dos direitos humanos (Carta Magna, etc.), onde ficaram abertos os fins do próprio Estado. No entanto por mais decisiva e importante que seja proteção dos direitos humanos, referida exclusivamente as violações do próprio Estado, a começar com o direito a um processo honesto (due process), esta restrição contudo então não tem mais sentido, se o Estado uma vez é compreendido como uma organização dos próprios cidadãos, que o fundam para guarnecerem reciprocamente os seus direitos. (p.379).

Que Alexy só com muita dificuldade reconhece também estes “direitos a eficácia”, que servem para a proteção do cidadão em face dos outros cidadãos, tem certamente ainda uma outra razão, que o Estado deve ter o menor custo possível. Mas juridicamente compreendido, o interesse num “Estado mínimo” apenas consiste, inclusive na tradição liberal, no fato de o Estado servir exclusivamente aos interesses (compreendidos, entretanto num sentido puramente negativo) de seus cidadãos. Mas, como já disse com a expressão Shue, é por si uma ficção a idéia de que existem direitos aos quais o Estado simplesmente só pode atender incluindo ai, para si, todas as intervenções. (p.380).

Uma vez concedido isto, não se pode, contudo ver como, na base do reconhecimento dos mesmos direitos, o Estado não seria, além disso, obrigado, novamente de maneira subsidiária, a ajudar positivamente aqueles que ele não pode proteger. É preciso observar que até o momento ainda sempre e exclusivamente se trata da garantia da integridade física, conquanto esta tenha sido ferida por indivíduos, dos quais o Estado não pode proteger seus cidadãos. (p.380).

Evidencia-se logo um outro passo, corretamente proposto por Shue: o Estado também é obrigado a ajudar a seus cidadãos em relação á sua integridade física, quando estes não forem violados por outros cidadãos, mas atingidos, por catástrofes da natureza. Este certamente é o primeiro passo que extrapola claramente da tradição liberal dos direitos humanos. Ele, contudo se dá como necessário a partir da perspectiva moral, a partir da perspectiva imparcial da desejabilidade de qualquer um. (p.380/381).

Nenhum individuo jamais teria podido sobreviver se não tivesse nascido no interior de uma comunidade. Precisamos contudo reconhecer naturalmente a liberdade e a autonomia do individuo como um bem central, e por isso a necessidade de ser protegido em sua liberdade como um direito moral central. (p. 386).

O conceito de liberdade não pode ser colocado anteriormente à enunciação dos direitos fundamentais Por isso, o que recentemente e muitas vezes ocupou o seu lugar é a dignidade humana, assim como no artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, mas também no artigo I, da Constituição da Republica Federal da Alemanha de 1949. (p.386).

Vale a pena examinar mais perto a tese de Alexy de que aqueles direitos que não são direitos de liberdade, portanto os assim denominados “direitos sociais”, deveriam ser fundamentados através de uma ampliação do próprio conceito de liberdade. (p.386/387).

Não se entende aqui aquela liberdade que aparece em Kant e Hegel no discurso sobre liberdade positiva como “liberdade para”, segundo a qual, somente seria livre aquele que é moral. Este conceito de liberdade positiva deve ser recusado porque é falso denominar como livre a um procedimento que está amarrado a alguma coisa, e nesta medida não é livre. (p.387).

Segundo esta distinção os clássicos direitos de liberdade são todos eles direitos de liberdade negativa. Alexy parece designar por assim dizer não – liberdade negativa e positiva como não liberdade jurídica e econômica, com que em todo caso atinge o problema central. (p.387).

Esta não liberdade no interior do sistema capitalista mundial não consiste simplesmente no fato de uma parte da humanidade não ter os recursos, mas em que os recursos existentes se encontram nas mãos dos ricos; estes são assegurados em sua propriedade através de um direito penal que é moralmente unilateral, e tem por isso um poder a partir do qual podem explorar os pobres, tanto quanto estes afinal podem participar da riqueza existente. Portanto, não se trata de fato de uma não liberdade meramente positiva, mas, ao ser impedido aos pobres o acesso aos recursos, trata-se de um misto entre não liberdade positiva e negativa. (p.388).

Existem três objeções Standard contra o reconhecimento dos direitos sociais. O primeiro enuncia que estes já não podem ser garantidos incondicionalmente, porque isto depende da riqueza da nação. Este argumento, contudo não pesa muito em quase todos os paises do mundo que gastam somas notáveis para o exercito (“o direito a segurança”) e nos quais existe riqueza, a qual apenas teria que ser re-dividida através de impostos e reforma agrária. (p.389).

Segundo, apontar-se á que os direitos fundamentais tem que ser claros, uma vez que precisam oferecer condições para ser cobrados juridicamente. Os direitos sociais fundamentais, por exemplo, o direito a um mínimo de existência humana digna, exigem, contudo determinações arbitrárias. Este argumento, contudo também não vinga, porque de fato também os outros direitos fundamentais exigem em sua proporção, determinações arbitrarias. (p.389).

Finalmente Alexy ainda cita outro argumento, que em oposição aos anteriores não é formal, mas de conteúdo: a realização dos direitos sociais fundamentais exige restrição de um dos clássicos direitos negativos, o direito à propriedade. Aqui estamos diante de um verdadeiro conflito e por isso não parece convincente uma posição como a defendida por P. Sieghart, que todos os direitos são importantes e que não deveríamos estabelecer nenhuma prioridade. Para o defensor conseqüente da tradição liberal, todo o imposto que serve para a redistribuição vale como roubo. (p.390/391).

A palavra “dignidade” causa dificuldades. Originalmente significava tanto como: de categoria básica e de valor; pertencia, portanto, nesta medida, a uma sociedade estratificada, e uma pessoa se comporta dignamente se ela se comportava de acordo com o seu alto grau. Em Kant trata-se então da mesma dignidade de todos os membros da comunidade moral universal, e o termo é usado como sinônimo de “valor incondicional”. Respeito e dignidade são para Kant correlatos. (p.391).

Shue distingue entre basic rigths e direitos restantes, de modo que os direitos fundamentais são aqueles que precisam ser observados, a fim de que o ser humano afinal possa exigir e observar quaisquer direitos. Um direito que esta no papel, mas que não pode ser observado não tem valor. Shue procura mostrar que integridade física, um determinado mínimo para a existência e certos direitos de liberdade são, neste sentido, os direitos fundamentais. Quem não dispõe do que esta garantido nestes direitos não pode gozar seus direitos políticos. (p.391/392).

É possível canalizar de tal maneira este pensamento, de modo que as relações, nas quais vive um ser humano, sejam humanamente dignas, exatamente quando elas preenchem a condição mínima para que ele possa gozar os seus direitos e para que leve, neste sentido, uma existência “humanamente digna”, especificamente “humana”. (p.392).

 

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Livro: Entre Dois Mundos


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O livro Entre Dois Mundos - Minha Vida de Prisioneira no Irã, escrito por Roxana Saberi, narra a prisão da autora, americano-iraniana, enquanto vivia no Irã. Desde sua prisão, mediante falsas acusações, até as torturas psicológicas sofridas em cárcere, a escritora apresenta a visão de uma sociedade que parou no tempo, um país que sofre uma tremenda tensão política e, por muitas vezes, uma completa falta de humanidade. Em alguns momentos a história provoca bastante emoção, principalmente quando a autora, ainda sob custódia do regime autoritário, tem a oportunidade de rever seus pais. 

De modo geral, esse livro é muito interessante para quem quer compreender melhor um pouco o país transformado pelo famoso aiatolá Khomeini, além de acompanhar a emocionante luta de Roxana contra o sistema político do Irã. Uma dica importante para complementar a leitura é o filme iraniano intitulado “Ninguém sabe dos gatos persas”, que nos auxilia a ter uma visão mais ampla e moderna do regime de Mahmoud Ahmadinejad. Diante de tanta opressão e sofrimento destacados na obra, a comparação com nossa sociedade e modo de vida acaba sendo inevitável e a saudade de quando nossa falta de liberdade se resumia apenas às ordens de nossas mães se transforma em uma certeza a cada dia que passa.
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Livro: 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil.


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A obra conta a historia de quando o rei de Portugal D, João VI ameaçado pelas invasões napoleônicas por ter furado o bloqueio continental com a Inglaterra, foge para a sua maior colônia na época o Brasil. Incluindo fatos e dados como a Revolução Francesa que “redesenhou o mapa da Europa”, a formação do Império Napoleônico, a vitoriosa resistência Inglesa, as tentativas de dominação francesa e a Colonização do Brasil, cuja riqueza sustentou a realeza lusitana, para onde a Família Real transferiu a sede do governo Português, fato sem precedentes na história conforme afirma autor.

Periodo Joanino BRASIL ESCOLA

O livro é muito instrutivo; Vale a pena ler, acima de tudo por tratar de um assunto de total relevância para entendermos a consequência do meio em que vivemos.


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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O Dialogo Democrático (Daniela Cadermatori)

 

  1. ESPECIFICAÇÃO DO REFERENTE UTILIZADO:

3.1 Fazer Ficha de leitura modelo Ficha resumo/analítica de obra científica da seguinte obra: CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. O diálogo democrático. Curitiba. Juruá. 2006.

2. RESUMO DO LIVRO

CAPÍTULO 1

A CONTRIBUIÇÃO DO LIBERALISMO PARA A FORMULAÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA.

Nicola Matteucci considera que a inexistência de uma definição comum de liberalismo decorre de uma tríplice ordem de motivos. Primeiro esta o vinculo histórico entre liberalismo e democracia, que cria dificuldades para o estabelecimento de um consenso em torno dos elementos liberais existentes nas atuais democracias liberais. (pg.27)

Liberalismo é o critério capaz de estabelecer a distinção entre democracias liberais e não liberais sejam estas ultimas totalitárias, populistas ou plebiscitárias.

(...) por liberalismo entende-se uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social. (pg.28).

Na visão de Bobbio; “O Estado liberal é o Estado que permitiu a perda do monopólio do poder ideológico, através da concessão dos direitos civis, entre os quais, sobretudo do direito a liberdade religiosa de opinião política, e a perda do monopólio do poder econômico, através da concessão de liberdade econômica, terminou por conservar unicamente o monopólio da força legitima, cujo exercicio porem esta limitado pelo reconhecimento dos direitos do homem e pelos vários vínculos jurídicos que dão origem á figura histórica do estado de direito”. (pg.29).

Uma definição genérica de liberismo afirma-o como um complexo de idéias que diz respeitos a condução e a regulamentação da vida pratica, e em particular da vida associada. (pg.30).

Os autores concordam em que, para que se alcance uma definição satisfatória de liberalismo, a identificação do valor supremo dos liberais qual seja, a liberdade, parece ser mais frutífera que o estudo dos movimentos e partidos do século XIX.

Dois conceitos de liberdade

O termo liberdade pode ser entendido de duas formas distintas: como faculdade de realizar ou não, certas ações sem ser impedido por outrem (inclusive o poder estatal) e como poder de obedecer apenas as normas impostas pela própria pessoa. (pg.31).

Por conseguinte, estado liberal é aquele em que a ingerência do poder público esta restrita ao mínimo possível; estado democrático, aquele em que mais numerosos são os órgãos de autogoverno. Ora, os mecanismos constitucionais do Estado de direito, objetivam a defesa dos indivíduos contra os abusos de poder. (pg.32).

Nesta acepção a liberdade opõe-se ao poder, sendo com ele incompatível: à medida que aumenta o poder, diminui a liberdade.

A história do Estado liberal coincide com o fim dos Estados confessionais e dos previlegios feudais, na medida em que o Estado neutro ou agnóstico e também a livre disposição dos bens mercantil burguesa.

A diferença entre as teorias liberal e democrática reside em que a primeira tende a restringir o poder coletivo e dilatar a esfera da autodeterminação individual, enquanto a segunda dilata a esfera da autodeterminação coletiva, restringindo a regulação heterônoma. (pg.33).

Construção da Historia e Reconstrução Racional

O que os diferentes conceitos de liberdade comprovam, caracterizados nas categorias liberdade negativa e positiva pelos seus obstáculos, é que, assim como eles possuem inúmeras diferenças, também o liberalismo, enquanto teoria política, comporta grande variedade de valores e crenças. Diferentes concepções de liberalismo acompanham os diversos estágios na luta pela liberdade: (pg.37).

Historicamente, o primeiro fundamento da doutrina liberal é o jusnaturalismo[1], pressuposto filosófico do liberalismo, justamente porque é portador de uma concepção geral e hipotética da natureza do homem que não necessita de verificação empírica nem de prova histórica, sendo com isto capaz de fundar a teoria dos limites do poder contrapondo ao Estado absoluto o poder liberal.[2]

A acepção de liberdade de Mill é a mesma do pensamento liberal, a liberdade negativa, aquela que faz dom que um individuo não possa ser impedido por uma força externa de fazer o que deseja e muito menos ser obrigado a fazer o que deseja. [3]

O liberalismo desta primeira fase, e em sua forma original é composto de 03 elementos: a teoria dos direitos naturais, o constitucionalismo e a economia clássica. [4]

Num terceiro momento, entre as décadas de 1880 e 1990, surgiria um novo liberalismo, caracterizado por três elementos essenciais: ênfase na liberdade positiva, preocupação com a justiça social e desejo de substituir a economia do laissez-faire.[5]

Pensadores como Kelsen e Keynes impulsionam o novo liberalismo no período entre as duas grandes guerras mundiais.

Liberalismo e autoritarismo diferem então, quanto a conotação que dão aos termos de poder e liberdade. A liberdade é o apanágio do liberalismo, enquanto o autoritarismo privilegia o poder.[6]

O liberalismo, vê a sociedade como organismo que precisa crescer de acordo com as tensões provocadas pelas forças que nele se encontram, na liberdade dialética dos valores por ele manifestados. [7]

A Relação Entre O Liberalismo E A Democracia

Para que o liberalismo e democracia pudessem confundir-se, no entanto, foi preciso considerar a democracia apenas como uma formula política, isto é, soberania popular, abandonando, assim, seu ideal igualitário.[8]

Apesar disto, as relações entre as duas doutrinas não são lineares, diz Bobbio: historicamente o Estado liberal é aquele em que a participação no governo fica restrita ás classes possuidoras, enquanto um governo democrático não leva necessariamente a um Estado liberal.

Para Alain Touraine, dizer que a democracia busca no liberalismo um de seus fundamentos basilares – a limitação do poder – não leva á conclusão de que a relação inversa se estabelecerá isto é que o liberalismo também terá como fundamento a democracia.[9]

Esta passagem de uma concepção a outra é fundamental para que tenhamos uma compreensão acabada do pensamento liberal e democrático moderno.[10]

Para que tal transformação no pensamento fosse possível, de acordo com Bobbio, foram fundamentais três eventos dentro da filosofia social da idade moderna: o contratualismo, o nascimento da economia política e a filosofia utilitarista. [11]

O Governo do povo: Jean Jacques Rousseau

O ponto de partida para o moderno pensamento democrático é dado pela idéia de governo do povo, ou soberania popular. O poder deixa de ser concebido como produto da vontade divina, do costume etc, e passa a ser visto como um produto da vontade humana, já que, enquanto o poder estiver à procura de sua legitimidade na tradição, direito de conquista ou vontade divina, a democracia será impensável.[12]

A partir de Rousseau a democracia passa a ser definida pela soberania popular e erige como bandeira o final dos regimes baseados na hereditariedade, no direito divino confundindo-se com a idéia de nação, como era o caso nos Estados Unidos e na França. [13]

Com a mudança, a idéia unificadora representada pela soberania popular para a defesa de outros direitos – em primeiro lugar do direito de os governadores escolherem seus governantes – passa a atuar em duas frentes: no combate ao poder absoluto e no estabelecimento de limites a um individualismo extremo.[14]

A Tirania das Maiorias: Aléxis de Tocqueville

O pensamento de Aléxis de Tocqueville (1805 – 1859), sobre os perigos da democracia, junta-se ao de outros autores que refletem sobre os regimes surgidos com a Revolução Francesa e, mais especificamente, sobre a guerra da independência americana, preocupados que estavam em: como proceder para que as decisões da Major pars não impeçam que o governo seja garantido pela sanior pars ou melior pars.

Ele é considerado o sociólogo do liberalismo clássico porque focalizava o estado da sociedade. Em Tocqueville, na solução deste problema político, não há um apelo aos direitos naturais. Ao contrario, o exemplo da Revolução Francesa mostrou-lhe que o mundo moderno situa-se inteiramente na ordem do direito positivo e que não são determinados princípios que irão deter as multidões, princípios ou forças armadas. [15]

Para Touraine lê rejeita o caráter absoluto da soberania popular – que pode levar ao despotismo – erige o cidadão como elemento capaz de impor balizas á soberania popular, mas não ao individuo.[16]

Para Tocqueville o individualismo é uma patologia social, um autocentralismo difundido, oriundo de uma sociedade igualitária dominada pelo materialismo, competição e ressentimento.[17]

Touraine afirma que, para Tocqueville, a entrada da sociedade na era moderna é decorrente de uma evolução social, isto é, de uma necessidade histórica – que pode dar-se pacifica ou violentamente – e não de uma transformação política, e passa pelo desaparecimento das ordens ou Estados hierarquizados e pelo surgimento, em seu lugar, da igualdade de direitos. Tal igualdade não pode ser considerada como uma igualdade de fato e sim, certa igualdade de condições.[18]

Pensamento liberal e pensamento democrático: John Stuart Mill

Nenhum autor melhor que John Stuart Mill (1806 – 1873) – considerado por Isaiah Berlin como o fundador do liberalismo moderno – percebeu o quanto democracia e igualdade estavam criando uma sociedade em que os objetivos humanos iam ficando mais estreitos, em que a originalidade e a capacidade individual iam sendo substituídos pela mediocridade coletiva.[19]

Stuart Mill partiu da constatação de que em seu mundo havia uma tendência ao surgimento de sociedades governadas pelo sentir da maioria, seguidas ou não por instituições políticas populares.[20]

Nas palavras de Berlin, com suas preocupações Stuart Mill parece, dolorosamente, prenunciar os efeitos desumanizadores da cultura de massa que implicam a destruição de projetos individuais e comuns, tratando os homens com criaturas irracionais suscetíveis e de serem manipuladas pela publicidade e pelos meios de comunicação em massa.

A luta competitiva dos grupos pelo voto: Joseph Schumpeter.

Para Bobbio, no momento em que se conclui que – em todos os tempos e em todos os níveis de civilização – o poder sempre esteve nas mãos de uma minoria, admite-se que não existe outra forma de poder senão a oligárquica. Com isto quer - se dizer que o que distingue um regime de outro não é o numero de governantes e sim, os diferentes modos como uma classe política se forma, se reproduz, se organiza. [21]

CAPÍTULO 2

O CONCEITO DE DEMOCRACIA NA OBRA DE ALAIN TOURAINE

Democracia Ideal

Para Alain Touraine a conceitualização da democracia deve harmonizar liberdade e igualdade, já que a democracia precisa de um principio contra o arbítrio do poder. Principio com dupla face:

Chama-se liberdade quando insiste sobre limitação do poder de Estado e igualdade quando define mais diretamente um principio de resistência á partilha desigual dos recursos econômicos e político.

A conceitualização de Touraine distingue três dimensões interdependentes: respeito pelos direitos fundamentais, cidadania e representatividade.[22]

O respeito pelos direitos fundamentais consiste na idéia da limitação do poder do Estado. O grande adversário da democracia, no século XX, é o totalitarismo, e para combatê-lo é preciso, antes de mais nada limitar o poder do Estado.

Só existe democracia quando o Estado esta a serviço não somente dos pais e da nação, mas dos próprios atores sociais e de sua vontade de liberdade e responsabilidade. [23]

A cidadania, direito de participar, direta ou indiretamente, na gestão da sociedade, não pode ser confundida com a nacionalidade, filiação a um Estado nacional, embora sejam, muitas vezes, juridicamente indiscerníveis. A nacionalidade cria uma solidariedade dos deveres, enquanto a cidadania dá direitos.[24]

A terceira característica da democracia é a representatividade, ou seja, a idéia de que os agentes políticos são representantes dos atores sociais. (...). A representatividade tem como condição, antes de mais nada, uma forte agregação das demandas provenientes de indivíduos e setores bastante diferentes da vida social e, em segundo lugar, o fato de que as categorias sociais devem ser capazes de se organizar de forma autônoma no plano da vida social e, portanto a montante da vida política.[25]

Para poder afirmar que uma democracia é representativa é preciso que, alem da existência de eleições livres, os interesses sociais sejam representáveis, que eles tenham uma certa prioridade com relação as escolhas políticas.

A predominância do respeito pelos direitos fundamentais dá a origem à concepção histórica mais importante de democracia. Alem do reconhecimento dos direitos fundamentais, a limitação do poder do Estado pela lei, é a preocupação central.[26]

Na democracia constitucionalista, o fundamento das leis esta na cidadania e na Constituição, sendo esta entendida como o conjunto das idéias morais ou religiosas que garantem a integração da sociedade. É quando a democracia progride mais pela vontade de igualdade do que pelo desejo de liberdade. [27]

A democracia conflitual salienta a dimensão da representatividade social dos governantes. Vista como defensora dos interesses das categorias populares, ela opõe- se aqui à oligarquia, representante de privilégios ou mesmo da propriedade do capital.[28]

(...) em outras palavras a democracia consiste na recusa de toda essencialidade do poder.

É o que permitira a Touraine afirmar que na democracia existe uma associação entre os aspectos morais, sociais e cívicos, sendo ela o contrario da política pura, isto é, da autonomia do funcionamento interno do sistema político.[29]

Democracia e Desenvolvimento

Para Touraine a separação entre sociedade civil, sociedade política e Estado é uma condição central para a formação da democracia.

Esta idéia é confirmada por Hans Kelsen quando diz que a democracia é a formação da vontade estatal diretora por um colegiado eleito pelo povo com base no sufrágio universal e igualitário, isto é, democrático e tomando suas decisões por maioria.[30]

Para Alain Touraine, a primeira condição da democracia é o conhecimento da autonomia da sociedade civil. Separada do Estado poderá legitimá-lo, permitindo a criação da sociedade política. [31]

A democracia não significa poder do povo, (...); mas significa que a lógica que desce do Estado para o sistema político e depois para a sociedade civil seja substituída por uma lógica que vá de baixo para cima, da sociedade civil para o sistema político e daí para o Estado (...)

O Estado engloba o poder executivo e a administração e possui uma continuidade histórica, manifestando-se nos momentos em que a sociedade nacional é ameaçada por problemas internos ou externos.

São os atores políticos que criam a lei e as decisões aplicadas em toda a extensão do território nacional.[32]

O desenvolvimento, entendido como um conjunto de relações sociais, ao mesmo tempo em que uma política econômica, é conseqüência da democracia, isto é, conseqüência de um sistema de gestão política da mudança social. A democracia é necessária porque existem conflitos sociais insuperáveis [33]

A concepção liberal da democracia, ao reduzi-la ao funcionamento das instituições políticas, leva a considerar que ela é um atributo dos paises mais desenvolvidos, dos que tem maior capacidade de fornecer respostas institucionais ás demandas sociais que, em parte, são satisfeitas pelos sucessos da economia e mobilidade individual. [34]

Em resumo não existe desenvolvimento se gestão aberta dos conflitos entre investimento e partilha, nem democracia sem representação dos interesses sociais e preocupação pela sociedade nacional. [35]

Democracia: Um conceito em construção

A idéia central do pensamento de Touraine é a de que, na definição de democracia, são mais importantes os inimigos que ela combate do que os princípios que defende.[36]

A idéia de democracia em Rousseau passava pela formação de uma associação que fosse capaz de defender e proteger os associados e seus bens de toda força comum, onde cada um só tivesse que obedecer a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes.

Em suma, uma definição atual de democracia precisa proteger as liberdades dos indivíduos e grupos contra a onipotência do Estado.[37]

Em suma, para Touraine a democracia só existe se estiver produzindo-se recriando-se constantemente. Muito mais do que uma idéia, ele é um processo.[38]

Os fundamentos da democracia, atualmente encontram-se na esfera cultural. Por cultura democrática devemos entender uma concepçai do ser humano que oponha uma sólida resistência ao poder absoluto, mesmo que validado por uma eleição, e que provoque o desejo de criar e preservar as condições da liberdade pessoal.[39]

A Democracia Vigente

Para falarmos de democratização não basta abolir o monopólio militar e instaurar eleições livres. Neste paises as desigualdades sociais aumentam, os direitos do homem são violados, faltando uma consciência de cidadania.[40]

A democratização deve ser feita através de uma gestão negociada das mudanças econômicas e sociais instrumentalizada pela ação política, demonstrando uma vontade de dar prioridade à luta contra as desigualdades.

Resumindo, para Touraine a democracia é considerada tão natural quanto à economia de mercado ou o pensamento racional, e se acha que deve mais ser protegida que desenvolvida e organizada.[41]

CAPÍTULO 3

O CONCEITO DE DEMOCRACIA NA OBRA DE NORBERTO BOBBIO

Contexto Teórico e Democracia como Método

Em Bobbio, o conhecimento da filosofia política é fundamentado por estudos de direito constitucional e familiaridade com a ciência política. [42]

O interesse do pensamento de Bobbio decorre, justamente do confronto entre o liberalismo político clássico, mediado pela experiência distintiva italiana, com a tradição teórica do socialismo. [43]

A filosofia jurídica de Kelsen, quando aplicada á esfera política, salienta a dimensão do estado enquanto estrutura de normas. Abandonando a teoria de Jellineck que dividia o Estado. O Estado de Kelsen é apenas uma idéia lógica útil, isto é, o conceito de unidade do sistema jurídico.[44]

Por outro lado, os trabalhos de Kelsen buscaram fundar sua teoria jurídica e política em novas abordagens do conhecimento, recorrendo a uma modernização epistemológica.[45]

Kelsen combateu as opiniões da direita antiliberal, especialmente as do jurista Carl Schimitt (1888-1987). Assim, para Schimitt, a sociedade torna-se o Estado já que este ultimo passara a atuar como uma agência econômica, ou mesmo como Estado Previdenciário.

Já para Kelsen o Estado permanece sendo um grupo especifico dentro da sociedade: associação para o domínio. Enquanto sistema legal de governo, o Estado regula a sua própria criação, denotando um processo mediante o qual as normas tornam-se cada vez mais concretas até chegar a instruções especificas emitidas pelos agentes de Estado.[46]

Kelsen estabelece uma destinação entre os planos da realidade e da ideologia. A metamorfose da idéia de liberdade conduz, da idéia á realização da democracia. A essência da democracia não pode ser compreendida se não estiver presente a antítese ideologia/realidade, antítese que, no problema democrático, assume um papel de particular importância.[47]

Kelsen salienta que na democracia, produto de uma visão relativista, a grande questão reside na existência ou não, de um conhecimento da verdade ou dos valores absolutos. [48]

É por isso que a democracia dá para cada convicção política a mesma possibilidade de manifestar-se e de conquistar o apoio dos outros homens através da livre concorrência.

Kelsen contrapõe o de que é justamente o método da democracia que coloca a luta pelo poder sobre uma base mais ampla, na medida em que o poder passa a ser objeto de uma concorrência publica que propicia uma maior base para a seleção.

A democracia, como experiência ensina,facilita a ascensão ao poder, garantindo, ao mesmo tempo, a rápida remoção do líder que não provar seu valor; enquanto a autocracia com seu principio de função vitalícia ou até de transmissão hereditária das funções age em sentido contrario. [49]

Bobbio inspirado nas idéias de kelsen e objetivando esclarecer o sentido que se deve dar á democracia quando se pensa em uma via democrática para o socialismo, esclarece que ele não é um conceito elástico; quando contraposto a autocracia mostra que tem contornos precisos.

Um regime democrático é aquele que atribui este poder ou direito a um numero extremamente elevado de membros do grupo.[50]

O Estado liberal e o Estado de direito são os pressupostos históricos e jurídicos do Estado democrático. São necessárias certas liberdades para garantir o exercicio do poder democrático, assim como, inversamente, o poder democrático é necessário para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais.[51]

Em suma, para Bobbio o governo das leis celebra hoje o próprio triunfo na democracia. Se a democracia é um conjunto de regras capaz de solucionar os conflitos sem derramamento de sangue, um bom governo democrático é aquele que observa rigorosamente estas regras.[52]

Para Merquior, o contratualismo neoliberal de Bobbio distingue-se de todos os outros, por buscar uma combinação da justiça e igualdade com as estruturas institucionais, tipos de regime, avaliados em sua pratica. (...). É porque Bobbio compreende que muitos Estados possuem controles institucionais de poder enquanto outros não, é que ele afirma genuinamente toda democracia é necessariamente uma democracia liberal.[53]

Cabe salientar que o embasamento teórico das analises Bobbianas da problemática da democracia é alicerçado num sólido conceito de sociedade civil.

Em suas polemicas com o marxismo, Bobbio afirma que a forma como o poder é conquistado não pode ser indiferentes ao seu futuro exercicio, insistindo na idéia de que a esquerda revolucionaria acabou por devotar muita atenção ao partido e pouca, ao Estado que estava por vir. [54]

Esta insistência de bobbio nos meios com respeito aos fins, também transparece em suas observações sobre o que é necessário para transformar um Estado numa verdadeira democracia.

É preciso que se considere que existe uma relação estreitíssima entre os resultados obtidos e os processos pelos quais foram obtidos e que também seja avaliado os processos através dos quais se chegam aos resultados.[55]

O Diálogo com a Esquerda

Tanto a democracia direta como a indireta descendem do principio da soberania popular, distinguindo-se apenas as formas e as modalidades com que são exercidas.[56]

Para Bobbio a democracia direta compreende, a democracia plebiscitária e a instituição do referendum.[57]

A realidade social da democracia exige a existência de lideres apesar de o ideal de liberdade democrática pregar a ausência de domínio.[58]

Na ideologia democrática, a eleição deve ser uma delegação da vontade do eleitor para o eleito.[59]

A direção exercida pelos lideres na ideologia democrática representa um valor relativo: o líder só é líder por um tempo e de acordo com certos pontos de vista. No mais, o líder é igual a todos os outros e, portanto, sujeito a criticas.[60]

Aqui aparece uma diferença entre os dois tipos reais de democracia e autocracia. Aplicando-se na pratica a teoria da transferência da psicanálise, temos na autocracia uma tendência á revolução: a possibilidade de compromisso não existe ou é muito pequena. Mas na realidade psicológica da democracia, o equilíbrio social repousa em efeito, sobre um acordo recíproco muito mais do que pode acontecer na autocracia real da ditadura, onde o que importa é somente suportar o peso comum da ditadura. [61]

Proibição do Mandato Vinculado

Um principio essencial da moderna democracia, no que respeita ao funcionamento do sistema parlamentar, reside na proibição feita aos representantes de receber um mandato vinculado por parte dos eleitores.

Os representantes nomeados nos departamentos não serão representantes de um parlamento particular, mas de uma nação inteira, e não poderá ser dado a eles nenhum mandato.[62]

Liberdade e Igualdade

Kelsen compreendeu que a idéia de democracia é determinada em primeiro lugar pelo valor liberdade e não pela igualdade, opõe-se terminantemente á oposição entre elas, já que na formação da ideologia democrática a participação da idéia de igualdade tem um sentido negativo, formal e secundário.[63]

Historicamente, a luta pela democracia é a luta pela participação do povo nas funções legislativas e executiva, isto é, a liberdade política.

As promessas do método democrático abrangem três ordens:

A. A participação, que envolve a participação coletiva e generalizada, mesmo que indireta, para as decisões que envolvam toda a comunidade.

B. O controle de base.

C. A liberdade de dissenso

a. Mesmo nos estado em que as instituições democráticas são formalmente mais aperfeiçoadas, encontram espaço os fenônemos contrastantes da apatia política ou falta de participação, e de participação deformada ou manipulada pelos organismos de massa, que detem o poder ideológico.

b. O controle da base arte do principio de que todo poder não controlado tende ao abuso e envolve o controle da população.

c. A liberdade de dissenso, finalmente, não oferece uma possibilidade de alternativa, radical.[64]

Resumindo: o método democrático não torna possível o socialismo, e o socialismo atingido por via não democrática não consegue encontrar a estrada para a passagem de um regime de ditadura a um regime de democracia.[65]

O socialismo Liberal de Bobbio é uma construção instável, diz Anderson. Liberalismo e socialismo, depois de atraírem-se, aparentemente, acabam, por separar-se, tendendo o liberalismo ao conservadorismo.[66]

O Dialogo com a Direita: Democracia e Estado Mínimo

Em suma, para os neoliberais a democracia é ingovernável não só da parte dos governados, responsáveis pela sobrecarga das demandas, mas também da parte dos governantes, pois estes não podem deixar de satisfazer o maior numero para fazerem prosperar sua empresa (partido).[67]

A Natureza da Relação entre Democracia e Estado de Direito

O estado de direito define qual o melhor modo de governo, o das leis ou o dos homens. Já na democracia se questiona qual melhor forma de governo. O critério de avaliação e de escolha é o numero de governantes.[68]

Considerando-se uma definição Kelseniana de direito, o Estado de direito seria uma entidade cuja força esta sendo constantemente regulada e limitada, e em que o poder coercitivo deixa de ser exercido caso por caso de acordo com a vontade do soberano, e passa a ser regulado por normas gerais e abstratas que estabelece quem está autorizado a exercer a força, quando, como e em que medida, o que significa que deve haver certa proporção, estabelecida de uma vez por todas, entre a culpa e o castigo.[69]

Estado de direito é sinônimo de garantismo, uma doutrina ou projeto elaborado por Ferrajoli que prega, justamente, a defesa do Estado de direito. [70]

Existe a dificuldade que surge quando da violação de ambas as garantias: a violação das garantias liberais, leva a existência de normas vigentes, mas invalidas, isto é,as antinomias, enquanto que a violação das garantias sociais comporta uma carência de normas ou lacunas. [71]

Enquanto a democracia formal refere-se ao Estado político representativo, que tem no principio da maioria a fonte da legalidade, a democracia substancial ou social nada mais é do que o Estado de Direito dotado de garantias efetivas, tanto liberais quanto sociais.[72]

Paradoxos e Promessas não compridas.

Os paradoxos, são afirmações que vão de encontro a sistemas e pressupostos que se impuseram como incontestáveis, funcionam como verdadeiros obstáculos, impedindo a democracia de cumprir o prometido.[73]

Tecnocracia e democracia estão destinadas a entrar em choque visto que a primeira é o governo dos especialistas, isto sé daqueles que sabem uma só coisa, mas sabem, ou deveriam saber bem, e a segunda, o governo de todos, daqueles que devem decidir com base na experiência e não, no saber.[74]

Pressuposto equivocados: a privatização do publico e a sobrevivência das oligarquias.

A teoria política jurídica dominante ao longo da formação do Estado moderno – a da estatização do privado- e o principio da liberdade como autonomia, inspirador da democracia, são responsáveis por uma compreensão equivocada da complexidade das transformações em curso nos planos social e político, alem de fazerem com que as promessas da democracia não possam ser cumpridas.[75]

Apesar de historicamente observar-se o fenônemo do engrandecimento do Estado a ponto de suscitar a imagem do polvo de mil tentáculos, teoricamente a figura do contrato ou a perspectiva contratual – com as devidas distinções – passou a ser cada vez mais usada na compreensão do caráter e vicissitudes do Estado contemporâneo.

Para Bobbio a permanência das oligarquias ou das elites no poder contrasta com os ideais democráticos – consiste no entendimento de como uma promessa não cumprida da democracia. [76]

Poder Invisível e Sociedade em massa

Embora o termo democracia possa ser dado os mais diversos significados, em nenhum deles pode se deixar de incluir a visibilidade ou a transparência do poder.[77]

Enquanto o autocrata necessita ver tudo sem ser visto, o político de um regime democrático fala em publico e para o publico, e logo é visível durante todo o tempo. [78]

Bobbio lembra que Kant, no Apêndice Á Paz Perpetua considera a publicidade como a condição necessária para a justiça de uma ação.[79]

Conclui-se que a exigência da publicidade dos atos de governo, além de ser importante para permitir que o cidadão conheça os atos de quem detem o controle do poder, servirá igualmente para o controle destes atos como um expediente que permite distinguir o lícito do ilícito.[80]

A democracia é o regime que prevê o máximo controle sobre os poderes por parte dos indivíduos, esse controle só é possível se os poderes públicos agirem com o máximo de transparência.[81]

Alain Touraine considera que é o papel da democracia desvelar as relações de poder em uma sociedade de massas. [82]

O problema de educar o homem para a democracia mostra-se tarefa impossível a partir de uma concepção liberal que tem base numa compreensão individualista do homem, privilegiando a sua capacidade de autoformar-se. A doutrina democrática baseia-se em uma concepção individualista da sociedade. Esta é a razão pela qual a democracia moderna se desenvolveu em locais onde os direitos de liberdade foram plenamente reconhecidos. [83]

A democracia tem como preposto o livre desenvolvimento das faculdades humanas, mas a sociedade de massa e o doutrinamento que ela impõe tendem a provocar a supressão do senso de responsabilidade individual, base de sustentação da sociedade democrática. [84]

Foi à sociedade de massa a responsável pela quebra das barreiras que obsculiza a democracia.[85]

CAPITULO 4

O CONCEITO DE DEMOCRACIA NA OBRA DE ROBERT DAHL

O Debate Sobre A Realdemocracia

A contribuição teórica de Robert Dahl ao tema democracia parte das inovações apresentadas pela teoria de Joseph Schumpeter, embora o primeiro de ênfase á teoria competitiva, enquanto Dahl começa onde Schumpeter pára, isto é, procura uma difusão e um reforço pluralista na sociedade como um todo, da competição entre elites.

Assim enquanto Schumpeter que apenas entender o funcionamento da democracia, Dahl pretende além de entender o funcionamento também promovê-lo.

A teoria participativa contrapunha-s a teoria competitiva desde suas origens: tratava-se de uma teoria antielitista da democracia em oposição á elitista. [86]

A grande colaboração de Robert Dahl á realdemocracia é a sugestão de algo aparentemente simples: utilizar o termo democracia apenas para designar o nível ideal do termo e acrescentar-lhe o significado de poliarquia. Fala-se então em democracia real.[87]

A obra de Dahl caracteriza-se por manter um denso vinculo com os temas da tradição e reflexão políticas, ao mesmo tempo em que configura as perguntas a serem dirigidas ao mundo.[88]

Estratégia Básica: Maximização e Descrição

O primeiro passo de Dahl foi examinar três tipos representativos de teoria democrática, não como tipos históricos concretas, mas tipos ou modelos ideais. Os tipos ideais são úteis porque facilitam a compreensão da ação real, influída por irracionalidades de toda espécie (afetos, erros), como um desvio do desenvolvimento esperado da ação racional e permitem encontrar regras gerais. [89]

Os três tipos representativos escolhidos por Dahl são: o madisoniano, que coincide com o Estado limitado pela lei; o populista, cujo principio fundamental é a soberania da maioria e o; poliarquico no qual as condições da ordem democrática derivam de pré-requisitos sociais.

Estes três tipos ideais servem para o estudo das vantagens e deficiências de dois métodos a partir dos quais poder-se-ia construir uma teoria democrática: o da maximização e o descritivo. [90]

Em suma, para dahl a teoria madisoniana de democracia nada mais é do que um esforço para se chegar a uma acomodação entre o poder das maiorias e o das minorias, entre a igualdade política de todos os cidadões adultos, por um lado, e o desejo de lhes limitar a soberania pelo outro. [91]

Democracia Ideal

Dahl afirma que, para um governo de associações voluntária ser considerado democrático, deverá satisfazer cinco critérios.

1. Participação efetivatodos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer com que seus pontos de vista sobre como deve ser a política, sejam conhecidos pelos outros membros.

2. Igualdade de votos.

3. Compreensão ilustradadentro dos limites razoáveis no que se refere ao tempo, todo membro deve ter oportunidades iguais e efetivas para instruir-se sobre as políticas alternativas relevantes e suas conseqüências possíveis.

4. Controle da agendaos membros devem ter a oportunidade exclusiva de decidir como e, se assim o escolhem, quais os assuntos que devem ser incorporados a agenda. [92]

5. Inclusão dos adultostodos ou, ao menos, a maioria dos adultos que são residentes permanecentes, devem ter os plenos direitos de cidadania implícitos nos quatro critérios anteriores. [93]

Mas quais seriam os benefícios que fazem com que a democracia seja mais desejável do que qualquer outra alternativa de fato, ou qual é o porquê da democracia? Dahl responde com dez razoes.

1º Razão: a democracia ajuda a evitar o governo de autocratas e depravados.

2º Razão: a democracia garante a seus cidadões uma quantidade de direitos fundamentais que os governos não democráticos não garantem e nem podem garantir.

3º Razão: a democracia assegura, a seus cidadões, liberdade pessoal muito mais ampla que qualquer outra alternativa.

4º Razão: a democracia ajuda as pessoas a protegerem seus próprios interesses fundamentais.

5º Razão: só o governo democrático pode proporcionar uma oportunidade máxima para que as pessoas exercitem a liberdade de autodeterminar-se – ou melhor, vivam com base em leis de sua própria eleição.[94]

6º Razão: só um governo democrático pode proporcionar uma oportunidade máxima de exercicio de responsabilidade moral. [95]

7º Razão: a democracia promove o desenvolvimento humano de modo pleno, mais do que qualquer outra alternativa de fato.

8º Razão: só um governo democrático pode fomentar um grau relativamente alto de igualdade política.

9º Razão: os paises com governos democráticos tendem a ser mais prósperos que os paises com governos não democráticos.[96]

  1. OUTRAS OBSERVAÇÕES:

Uma teoria da democracia inclui, forçosamente, a busca por um melhor governo e a defesa de uma situação ideal.

Para analisar a democracia moderna, parte-se do liberalismo visto não como simples ideologia, mas como fenônemos que moldou grande parte do mundo moderno e cujas ideais confundiram-se com instituições políticas e sociais.

A conceitualização de democracia de Alain Touraine surge da tentativa de harmonizar os valores da liberdade (enquanto limitação do poder do Estado) e igualdade (principio de resistência a partilha desigual dos recursos econômicos e políticos).

Caracteriza-se também por distinguir três dimensões interdependentes: respeito aos direitos fundamentais, cidadania e representatividade.

O dialogo de Touraine preocupa-se em estabelecer, dirige-se aos paises que recentemente transitaram de ditaduras para as democracias do que a esquerda propriamente dita.

A primeira condição de democracia é a autonomia da sociedade civil, sendo a separação entre sociedades civil, política e Estado uma condição sine qua non.

A idéia central do pensamento de Touraine é a de que, na definição de democracia são mais importantes os inimigos que ela combate do que os princípios que defende.

Em suma, a democracia só existe se produzir-se e recriar-se constantemente. Muito mais do que uma idéia ela é um processo, uma mediação entre o estado e a sociedade civil.

Para termos um regime democrático é preciso que, simultaneamente, ocorram a liberdade das escolhas políticas e a representação dos interesses da maioria.

Bobbio é um filosofo cujo pensamento considera a centralidade das idéias dos clássicos – o estado dos temas recorrentes, aqueles continuam reformulados pela reflexão política, individualizando algumas grandes categorias que fixam em conceitos gerais os fenônemos que entram para o universo da política.

A teoria bobbiana consiste em constatar uma expansão da democracia para varias áreas da vida social, ao invés da substituição da democracia representativa pela direta, como pregavam algum dos setores da esquerda.

A posição liberal progressista de Bobbio não remete ao aspecto econômico e muito menos político, no sentido estrito da palavra, mas ao seu sentido filosófico, e cultural, assim como em Stuart Mill ela se caracteriza pelo papel substancial desempenhado pela liberdade humana na historia, em oposição a tido o tipo de providencialismo.

Bobbio remete as lições de Kelsen sobre a criação de normas jurídicas, salientando a dimensão do Estado enquanto estrutura de normas.

É inspirando-se, pois em Kelsen, que Bobbio afirma não ser a democracia um conceito elástico: qualquer consideração política só pode ser valida quando a definição de democracia é mínima, isto é, quanto é considerada primariamente como um regime democrático, um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.

Os direitos básicos do Estado de direito, oriundos do modelo liberal, são essenciais para que a democracia funcione.

Os pressupostos do Estado democrático são o Estado liberal e o Estado de direito.

Outro conceito importante a inferir dos pressupostos teóricos de Bobbio é o de Estado de direito. Ele surge historicamente antes do Estado democrático, não podendo com ele ser confundido, muito embora um juízo positivo sobre a democracia tenha obrigação de considerá-lo. A natureza desta relação é na atualidade tão intima que o Estado de direito celebra a existência da democracia: ela é o governo das leis por excelência.

A democracia é o processo lento, mas irrefreável de aproximação a esses valores inatingíveis por incompatíveis. Em relação a este assunto Touraine, Bobbio e Dahl são unânimes, distinguindo-se os dois últimos do primeiro, já que se alicerçam sua teoria na própria diferença.

Robert Dahl reflete pouco sobre a relação entre Estado de direito e democracia. Afirma que o Estado de direito é parte fundadora, no plano da democracia real, mas não o considera como uma das instituições necessárias a um governo democrático e muito menos o eleva a condição essencial ou favorável ás instituições democráticas, capaz de garanti-las.

Com para ele o processo democrático não é independente das condições históricas – a democracia só surge quando estão presentes as condições adequadas – sua teoria não conclui que, historicamente, uma virada da hegemonia para a poliarquia seja inevitável.

Quando Dahl afirma que um governo democrático evita a tiranias diz que uma sombra paira sobre muitos governos populares, que tratam cruelmente pessoas de fora de suas fronteiras. Sugere então a necessidade de se criar um código internacional de direitos humanos, isto é expandir a democracia da esfera nacional para a internacional.

Analise produzida teve por objetivo principal buscar novos horizontes ao estudo da democracia, pensando em como ela pode servir de modelo de organização social neste limiar do terceiro milênio.

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A LUA NO CINEMA


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A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
(Paulo Leminski)

barra rosassss

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O TRABALHO DO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL NA DPCAMI: LIMITES E POSSIBILIDADES

 

 

1.1 PERSPECTIVAS DE ATUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL

O Assistente Social é um profissional multidisciplinar que atua com a perspectiva da totalidade e de maior contato com as políticas públicas de saúde, Assistência Social e educação, que pertencem à esfera de prevenção primária dentre as mazelas da sociedade criando assim possibilidades de enfrentamento para as demais questões evitando maiores consequências.

O Assistente Social se defronta, cotidianamente, com “candidatos” a cidadãos, que buscam ajuda para satisfação de necessidades básicas de sobrevivência. Trata – se de uma profissão que lida com as misérias humanas, com produto da exploração do homem pelo homem, fazendo aflorar e trazendo para o confronto reflexões sobre os valores de nossa realidade, exigindo um posicionamento ético e político frente à realidade, em todas as suas possibilidades, na tentativa de buscar a sua transformação. (PAVEZ; OLIVEIRA, 2002, p.89).

Desde o inicio, o Serviço Social atua nesses espaços, consolidando-se como uma área de grande importância junto ao Direito, Psiquiatria e Psicologia. Assim, o processo que dá início a sua inserção em delegacias policiais, teve como estopim a luta das mulheres contra os diversos tipos de violência sofrida, a partir dos anos de 1980, com ênfase nas unidades especializadas na defesa e proteção das mulheres.

A conjuntura social brasileira da década de 1980 serviu de palco para que um novo projeto ético-político do Serviço Social fosse gestado, rompendo com uma trajetória conservadora. Vários fatos contribuíram para esse rompimento, dentre eles o movimento de reconceituação, a crise da ditadura militar, a abertura democrática e as mobilizações de diferentes categorias de trabalhadores. (NETTO, 1999, p.100).

De acordo com NETTO (1999, p.100), o contexto histórico vivido pela sociedade levou a categoria profissional a um redimensionamento político comprometido, optando desta forma, pela construção de uma sociedade mais justa.

E complementa:

Como todo o universo heterogêneo, a categoria profissional não se comportou de modo idêntico. Mas as suas vanguardas conquistaram, então, vivência democrática e se mobilizaram ativamente na contestação política [...] , os segmentos mais ativos da categoria profissional vincularam-se ao movimento social dos trabalhadores, rompendo com a dominância do conservadorismo [...] (NETTO, 1999, p.100).

Logo, seja no espaço da violência contra a mulher ou em qualquer outro espaço ocupacional, o assistente social intervêm sobre um objeto de trabalho, ou seja, sobre este incide alguma ação profissional. Por isso, para o assistente social, é essencial o conhecimento da realidade em que atua, a fim de compreender como os sujeitos sociais experimentam e vivenciam estas situações. No caso em tela, ao trabalharmos com a temática da violência contra a mulher, o Profissional de Serviço Social necessita aprofundar seus conhecimentos sobre as múltiplas determinações que dela decorrem.

Com base nesta premissa Iamamoto sustenta que:

O grande desafio na atualidade é, pois, transitar da bagagem teórica acumulada ao enraizamento da profissão na realidade, atribuindo, ao mesmo tempo, uma maior atenção às estratégias e técnicas do trabalho profissional, em função das particularidades dos temas que são objetos de estudo e ação do assistente social. (1999, p.52):

Sua funcionalidade não pode ser considerada somente pelas habilidades técnicas de seus profissionais, e sim, pelo elemento “educativo” e “disciplinador” de que ele se constitui, o que o leva a ser chamado para determinadas tarefas históricas.

Neste sentido, esclarece Iamamoto:

Programas e agentes são mobilizados para detectar, preventivamente, as tensões sociais e, localizadamente, atenuá-las diante das sequelas derivadas da intensificação do processo de exploração da força de trabalho e de sua contrapartida: a presença crescente dos trabalhadores no cenário político da sociedade (IAMAMOTO, 1992, p. 42).

Desta forma, os profissionais de Serviço Social nas Instituições executoras da Política de Segurança Pública, além do compromisso com o atendimento de qualidade, devem possibilitar aos usuários o conhecimento sobre os seus direitos civis, políticos e sociais, fortalecendo o usuário no acesso e no processo de mudança da realidade na qual se insere, com vista à ampliação dos seus direitos e efeitos da cidadania.

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domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Princípio da Vida (Hans Jonas)

 

 

JONAS, Hans. O Princípio da Vida. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, Editora Vozes. 2004, 278 p.

3 ESPECIFICAÇÃO DO REFERENTE UTILIZADO: O Princípio da Vida

4 DESTAQUES CONFORME O REFERENTE

4.1 CAPÍTULO I – O PANVITALISMO E O PROBLEMA DA MORTE

4.1.1 Para os primórdios da interpretação humana do ser, a vida se encontrava por toda parte, e o ser confundia-se com o ser vivo. “Animismo” é a forma amplamente difundida deste estágio, “hilozoísmo” uma de suas formas conceituais refletidas mais tarde. A “alma” ocupava o todo da realidade, e ela se encontrava a si própria em toda parte. A matéria “pura”, isto é, matéria “morta”, não fora ainda descoberta (...). Pelo contrário, a mais natural de todas as suposições, ainda por cima amplamente apoiada pela aparência, é a de que o mundo seja vivo. [p. 17]

4.1.2 (...) só depois que pela revolução copernicana os horizontes do ser humano foram ampliados para as distâncias do universo é que o lugar proporcional da vida no conjunto das coisas tornou-se bastante pequeno para passar a ser aquilo que desde então passou a constituir o conceito de “natureza”. [p. 17]

4.1.3 (...) Ao ser humano primitivo (...) o panvitalismo era uma verdade ligada à sua perspectiva, e só uma mudança de perspectiva conseguiria destroná-la. (...) Nesta visão do mundo, o mistério com que o ser humano se defronta é a morte, que contradiz todo quanto ele compreende. (...) Na medida em que a vida é considerada como o estado primário das coisas, a morte destaca-se como o enigma que perturba. (...) Antes de espantar-se com o milagre da vida, o ser humano espantou-se com a morte e procurou descobrir-lhe o significado. [pp. 17-18]

4.1.4 (...) A metafísica procura resolver esta contradição básica, de que tudo é vida e que toda vida está sujeita a morte. Ela se expõe ao desafio radical, e para salvar a totalidade das coisas, nega a morte. (...) Querer interpretar a morte significa (...) reconhecer que ela é estranha ao mundo (...). É este o paradoxo: precisamente a importância do culto aos mortos nos inícios da humanidade, a pujança da idéia da morte no princípio da reflexão humana, dão testemunho de um fundo mais poderoso da idéia universal da vida: o ser só se torna compreensível e real como vida; e a permanência do ser que se pressente só pode ser entendida como permanência da vida – para além da morte. [pp. 18-19]

4.1.5 O pensamento moderno, que teve início com o renascimento, encontra-se na posição exatamente oposta: o natural, aquilo que se pode compreender, é a morte, o que constitui um problema é a vida. (...) É o estado “natural” (...). No ser físico, não só no que diz respeito à relações de quantidade, mas no tocante também à sua verdade ontológica, a não-vida é a regra, e a vida uma exceção e um enigma. (...) O próprio fato de termos hoje que discutir o problema teórico da vida em lugar do da morte atesta o status da morte como o estado natural, como aquilo que se explica por si mesmo. (...) agora a hipótese abrangente é o pan-mecanicismo (...) Considerar a vida como problema significa admitir sua alienação no mundo mecânico que este é; explicá-la – neste estágio de ontologia universal da morte – significa negá-la, fazer dela uma variante das possibilidades do sem-vida. [pp. 19-20]

4.1.6 (...) No esquema moderno (...) o homem-máquina, representa simbolicamente o que no antigo foi representado pelo “hilozoísmo”: a usurpação de um setor negado pelo outro, que goza do monopólio ontológico. (...) no novo monismo uma forma da pergunta está voltada para trás: não mais como surgiu a morte, mas sim como surgiu a vida neste mundo sem vida. [p. 21]

4.1.7 O dualismo é o elemento de ligação que historicamente uniu os dois extremos, que até agora foram aqui contrapostos um ao outro; efetivamente, foi ele o veículo para o movimento que levou o materialismo da época atual, como um resultado não intendido ou mesmo paradoxal (...). [p. 22]

4.1.8 (...) Um dos elementos que podem ser encontrados na origem e na história do dualismo é sem dúvida alguma o tema da morte. [p. 22]

4.1.9 Soma-sema, “o corpo – um túmulo”, esta (no orfismo) a primeira resposta dualista ao problema da morte, que agora, da mesma forma que o da vida, se havia transformado no problema da relação entre duas entidades diferentes, corpo e alma. O corpo, de per si, é a “sepultura da alma”, e a morte corporal é a ressurreição desta. [p. 23]

4.1.10 No ponto mais alto do desenvolvimento dualista, na gnose, a comparação soma-sema, que originalmente permanecera limitada ao ser humano, expandiu-se para o universo: o mundo inteiro é sema, túmulo da alma ou do espírito, daquela estranha inclusão no que de resto não tem relação alguma com a vida. [p. 24]

4.1.11 O caminho do dualismo (...) define a ordem cronológica reversível dos dois pontos de vista, e o próprio dualismo representa o período do pensamento até agora mais importante na história do espírito, cuja produção não pode perder-se, mesmo depois de haver sido superada. (...) Toda reflexão sobre o ser que veio mais tarde não é, por sua natureza interior, pós-dualista apenas do ponto de vista cronológico, como a anterior era essencialmente pré-dualista. (...) da mesma forma a consideração pós-dualista do ser ocupa-se inevitavelmente com as duas peças deixadas pelo dualismo, frente às quais ela só consegue ser monista ao preço de escolha ontológica entre os dois, de uma opção por um ou por outro – pelo menos enquanto a herança metafísica do dualismo ainda forçar o reconhecimento do seu caráter de alternativa. (...) portanto, todo monismo pós-dualista implica em uma decisão por um lado ou por outro; isto e´, ele próprio é de natureza alternativa, e por conseguinte particular, e se defronta com o seu oposto com a possibilidade que ficou excluída. [pp. 25-26]

4.1.12 (...) Com o fato da morte, foi primeiramente no corpo que se manifestou a oposição ente vida e não-vida, oposição esta que exerceu constante pressão sobre o pensamento e fez ruir o panvitalismo primitivo, provocando a divisão da imagem do ser. O mesmo acontece agora, de maneira invertida, com a unidade concreta que se manifesta na vida onde também o dualismo das duas substâncias vem a fracassar. E é mais uma vez a mesmo unidade dos dois que se transforma em escolho submerso para cada um dos sistemas alternativos oriundos do dualismo., logo que, como não pode deixar de ser, eles busca alargar-se para ontologias integrais. [p. 28]

4.1.13 Assim o problema da vida é ao mesmo tempo um problema central da ontologia, e o problema que continua intranqüilas as modernas posições antitéticas no materialismo e no idealismo. (...) Como expressão desta situação teórica pós-dualista, a variante do materialismo é manifestamente a mais séria e mais interessante da ontologia moderna, em comparação com o idealismo. Pois em sua esfera objetiva ele realmente permite o encontro com todos os outros corpos, também com os corpos vivos, e ao ser obrigado a submetê-lo também aos seus princípios ele se expõe à prova real ontológica e à possibilidade do fracasso. (...) O idealismo consegue evitar esse problema; do ponto de vista da consciência pura, por mais artificial que este seja, ele consegue sempre interpretar o corpo com todos os demais corpos, como “idéia” de um “fenômeno” exterior dentre de seu horizonte objetivo, e assim negar a corporalidade própria: com isto evita o problema da vida, da mesma forma que o da morte.[p. 29]

4.1.14 A antítese dualista não leva ao incremento dos traços vitais ao concentrar-se em um dos lados, mas sim à morte de ambos os lados, por terem sido separados do seu centro vivo. E esta morte se vinga pelo fato de que – mesmo sem falar do enigma da vida – para a interpretação da regularidade externa nos movimentos da matéria a imagem de sua causalidade por uma força atuante não encontra mais nenhuma justificativa verdadeira em nada do que acontece diretamente [p. 31]

4.1.15 Lembramos aqui a resposta dada por Kant ao ceticismo de Hume, resposta que pretende apresentar uma razão de direito apriorista deste tipo. Mas também a solução transcendental do problema, que mesmo assim pretende fundamentar a causalidade e sua validade objetiva a partir unicamente da consciência pura, não pode fugir à verdade de que o concreto não pode ser deduzido de uma de suas abstrações. Seu êxito depende essencialmente, entre outras coisas, de se provar que a causalidade é realmente um conceito do entendimento puro. [p. 31]

4.1.16 (...) Sempre permanece em aberto a questão de saber se a vida representa uma complicação quantitativa na ordenação da matéria, e se sua liberdade ou teleologia é apenas um apagamento aparente de sua clara e simples determinação por crescimento de complicação (...); ou se, ao invés, a matéria “morta” deve ser entendida como um modo deficitário das propriedades da vida sensitiva, como restrição da mesma ao mínimo de um estado germinal infinitesimal – e neste caso o seu determinismo seria uma liberdade adormecida, ainda não despertada. [p. 33]

4.1.17 (...) Qualquer que seja no entanto a causalidade, nisto a crítica de Hume estava certa: ela não ocorre em uma ato de contemplar, e o nexo entre os dados não é ele mesmo um dado, um conteúdo de contemplação. Força, de fato, não é um “dado” mas sim um “ato”, presente no ser humano em seu esforço. Mas esforço não é contemplação – e muito menos uma forma de síntese da contemplação. Porém a objetividade do pensar está ligada à contemplação, e assim não pode atingir o que nela não está contido. [p. 33]

4.2 CAPÍTULO I – PERCEPÇÃO, CAUSALIDADE E TELEOLOGIA.

4.2.1 Hume mostrou que a “causação” não está presente entre os conteúdos da percepção dos sentidos, e este resultado é irrefutável enquanto com ele considerarmos a “percepção” como mera receptividade que registra os dados fornecidos pelos sentidos. Assim também o entendeu Kant, ao assumir a descoberta negativa de Hume. E mais ainda quando se sustenta como o fizeram tanto Hume como Kant, que tal percepção passiva é a única maneira pela qual o mundo exterior é “dado” originalmente – de modo que só por meio de nossa receptividade nós próprios temos conhecimento de nossa atividade corporal, cujas seqüências de dados precisam primeiro ser interpretadas no sentido da ação -, então a causalidade de fato tem que ser um acréscimo mental ao material que primariamente nos é dado; e a diferença entre as teorias refere-se apenas à fonte e à natureza deste acréscimo. Hume a enxergou no hábito da associação (ela própria passiva por parte do sujeito), e Kant na estruturação pelo entendimento (que, embora “ativa”, está em estrita imanência mental). Mas nenhuma das duas teorias positivas consegue fechar a lacuna aberta pelo bom êxito do argumento negativo. [pp. 35-36]

4.2.2 (...) A intenção (...) não é fundamentar o caráter efetivo da causalidade como tal, nem sua experiência isolada e contingente, mas sim a validade de uma lei universal da causalidade para experiência como um todo. Então o que se deveria provar (...) é se o argumento consegue uma forma válida. Qualquer que seja a resposta, uma lei referente à experiência jamais pode falar pela própria experiência primária. [pp. 37-38]

4.2.3 (...) Uma outra doutrina pretende substituir a dinâmica interior par exterior, a origem ilegítima pela legítima: ambas pressupondo que neste assunto a “percepção” se cala (o que ela realmente faz quando isola o monopólio cognitivo que lhe é imposto), e que por isso não existe nenhum conhecimento direto da força, transitividade e ligação dinâmica das coisas. [p. 38]

4.2.4 (...) O mundo, em vez de se apresentar com clareza, também pode introduzir-se dinamicamente no testemunho que nos dá de si mesmo e com sua causalidade atropelar a percepção. (...) No caso do sentido da visão o rendimento é perfeito, graças às propriedades dinâmicas da luz e às ordens de grandeza relativa envolvidas. A aparente inatividade e auto-fechamento do objeto visto corresponde à aparente inatividade e fechamento de quem contempla (...). Sua completa eliminação do produto da imaginação, que no perder sai ganhando mas que nem por isso deixa de perder, introduz um elemento de abstração – a abstração da imagem – na constituição interna da percepção sensível, e com isso no conhecimento do objeto como tal. [p. 40]

4.2.5 (...) O entendimento em si, quando os desnudados objetos dos sentidos lhe são entregues unicamente para serem tratados, não pode produzir aquele caráter, nem por seus próprios meios de ligação criar um substitutivo para eles (aqui Hume tinha razão, e não Kant). Mas ao desfrutar da vantagem da liberdade da teoria -, ele precisa aceitar também a desvantagem na relação objeto-objeto. [p. 41]

4.2.6 (...) No tocante a relação objeto-objeto, o problema de Hume da conexão necessária (...) é um bom exemplo epistemológico. (...) Libertar o “ser” deste cativeiro na “substância” é um dos principais objetivos da ontologia contemporânea. Além disso, o fato de a “força” não ter lugar no sistema (um aspecto do mencionado cativeiro) levanta a questão do antropoformismo, cujo banimento do conhecimento do mundo exterior foi admitido com demasiada naturalidade para a epistemologia da ciência. [p. 42]

4.2.7 (...) jamais se afirmou que “causa final” seja um conceito estranho ou abstruso, ou mesmo “antinatural”. Pelo contrário, não existe coisa que seja mais natural ao espírito humano ou mais familiar à experiência corriqueira dos homens: e o que na nova atitude científica falava contra ela era exatamente isto. (...) Sob o título da res extensa, a realidade exterior foi totalmente desvinculada do mundo interior do pensamento, passando depois a constituir um campo auto-suficiente para a aplicação universal da análise matemática e mecânica: a própria idéia de “objeto” teve que passar por uma transformação através do expurgo dualista. (...) “Objetividade”, por conseguinte, passa a ser a elaboração dos dados exteriores dos sentidos segundo suas propriedades extensionais. (...) Nesta constelação dualista nós nos deparamos com a “natureza do ser humano” como uma fonte de impurezas para a “filosofia” (isto é, para a ciência natural), e a objeção levantada contra a explicação final é o fato de ela ser antropomórfica. [pp. 45-46]

4.2.8 A ciência deixou-se levar pela inclinação da filosofia ao ceticismo. (...) Neste movimento manifesta-se, pois, uma dialética profunda. (...) quando o dualismo sai de sena e a res cogitans, fundamentada no orgânico, passa a ser ela própria parte e produto da natureza unificada, o fato de Bacon atribuir as causas finais à “natureza do ser humano” deixa de provocar aquele efeito eliminador que existia na configuração dualista. (...) por fim, a teoria da evolução, agora uma parte inseparável do monismo moderno, dilui os derradeiros vestígios da linha divisória em que se baseava todo o argumento do contraste entre a “natureza” e o “ser humano”. [pp. 47-48]

4.3 CAPÍTULO III – ASPECTOS FILOSÓFICOS DO DARWINISMO

4.3.1 Desde o começo da especulação humana as perguntas pela origem sempre acompanharam as interrogações mais amplas acerca da natureza e das coisas, e nisto a filosofia mecanicista não constituiu exceção. (...) De todas as esferas do ser, foi o mundo dos seres vivos que por mais tempo resistiu a esta idéia da origem, só no século 19 a teoria da evolução conseguindo subordinar a vida ao esquema geral de tratamento. [pp.50/52]

4.3.2 A “evolução”, no sentido moderno da palavra, permitiu conferir maior confiabilidade à matéria no surgimento do reino vivo, com isto permitindo que o monismo materialista da ciência natural desse um passo decisivo. Isto ela conseguiu ao abandonar o significado original da palavra “evolução”, desvinculando-a do processo de crescimento dos organismos individuais. (...) uma vez que a vida exista, ela vai progressivamente determinando suas próprias condições para o jogo das variações mecânicas, e com isto as probabilidades passam a ser efetivamente mais favoráveis do que no caso dos macacos, que a cada momento precisam começar de novo, sem se beneficiarem de suas realizações anteriores. [pp. 53-54]

4.3.3 Efetivamente o evolucionismo do século 19, que realizou a revolução copernicana na ontologia, é um predecessor apócrifo (...) do atual existencialismo. O encontro deste com o “nada” surge da negação da essência, que impediu o retorno a uma “natureza” ideal do ser humano, assim como pôde na Antiguidade ser encontrada na definição clássica do ser humano através da razão (...), ou na definição bíblica com a criação do ser humano à imagem de Deus. Com a queda da idéia da criação esta “imagem” sumiu, juntamente com o original; e a razão ficou reduzida a um meio entre outros, avaliado pelo seu rendimento instrumental na luta pela sobrevivência; por sua aptidão puramente formal, no prolongamento da astúcia animal, a razão não impõe norma, sendo avaliada por padrões que independem de sua autoridade. [pp. 57-58]

4.3.4 De acordo com as categorias do evolucionismo, a mesma lógica vale para a vida. A combinação de necessidade e contingência pode ser reconhecida em todos os aspectos da questão (...). a) Um destes aspectos foi a inversão da primitiva crença na superioridade das origens (...). b) Outro aspecto foi a inversão da relação tradicionalmente admitida entre estrutura preestabelecida e função dela dependente, e também aqui nós nos deparamos com a propriedade da contingência (...). c) Uma terceira característica que aponta para a hegemonia de “necessidade e contingência”, nós a encontramos na insistência sobre o conceito de ambiente. [p. 60]

4.3.5 (...) ao combinar o darwinismo com a genética moderna, combinação que constitui o cerne da teoria atual, um novo modelo dualista substitui na interpretação da vida todo dualismo anterior. (...) ao libertar-se deste modo da necessidade dualista de contar com um princípio criador distinto do criado, o monismo, que desta maneira chegava à hegemonia, onerou a matéria, e agora somente a matéria, com todo o peso de uma tarefa de que o dualismo a havia deixado livre: a de, além das organizações físicas, dar conta da origem do espírito. [pp. 63-64]

4.3.6 O dualismo cartesiano levou a especulação sobre a natureza da vida a um beco sem saída: quando mais compreensível, de acordo com os princípios da mecânica, tornou-se, na res extensa a relação entre estrutura e funcionamento – tanto mais perdeu-se na bifurcação a conexão entre estrutura-mais-função e sentimento ou experiência (modo de ser da res cogitans), e com isto o próprio fato da vida se torna incompreensível no exato momento em que a explicação de sua realização corporal aparece como garantia. [p. 69]

4.4 CAPÍTULO IV – HARMONIA, EQUILÍBRIO E DEVIR

4.4.1 Formalmente, o sentido de “sistema” é determinado pelo conceito de conjunto, que pressupõe uma pluralidade que chegou a estar junta para relação do conjunto, ou que não pode existir de outra maneira a não ser nesta relação. Sistema, portanto, é necessariamente algo múltiplo, mas além disto o sentido de conjunto está em que o múltiplo possui um princípio eficaz de sua unidade. (...) Com o tema “sistema” nós nos encontramos assim no terreno dos problemas ontológicos clássicos do uno e do múltiplo, e da permanência na transformação. [p. 78]

4.4.2 O devir é (...) um decréscimo de casualidade e indeterminação (para evitar a expressão “liberdade”) – por conseguinte um decréscimo progressivo de sua própria condição de possibilidade. (...) Mas dois aspectos deste quadro hipotético do sentido do sistema e do seu devir, tirados da mecânica (“clássica”) da ontologia moderna, são de particular importância para saber se o conceito de sistema é adequado para abordar os fatos vitais. Um deles diz respeito ao conceito de devir, o outro ao de ser. Os dois podem ser tratados em conjunto, com relação entre ser e devir. No que se refere ao devir, temos que ver com clareza que a ocasião para o novo está presente na mesma medida em que o desequilíbrio, e que o aproveitar dessa ocasião (...) nasce unicamente do dinamismo do desequilíbrio. (...) Devir é uma condição necessária e limitadora, não um caráter interno do ser; e a razão permanente desta condição é a definitiva limitabilidade do substrato indiferente que se chama matéria. [pp. 78-79]

4.4.3 A primeira aplicação moderna do conceito de sistema aos corpos vivos deve ser vista na teoria de Descartes do organismo animal como uma máquina ou um autômato natural, superior às criações da arte mecânica unicamente pela multiplicidade e pela pequenez de suas partes. (...) Descartes procurou explicá-la por meio de uma teoria dos reflexos (...), que para explicar a “aprendizagem” sem recorrer à teologia chega a antecipar o conceito de reflexos condicionados, isto é, de conexões senso-motoras modificadas mecanicamente por estímulos externos. Não obstante, concepção cartesiana repousa essencialmente sobre o modelo clássico do mecanismo como sistema individualmente fechado e isolável. O que é significativo em relação a doutrinas mais antigas é que este mecanismo pode “viver” sem “alma”, isto é, pode – e tem que – exercer todas as funções ligadas ao processo vital graças à disposição de suas partes. O efeito global destas funções é a autoconservação, e os sistemas foram construídos para produzirem este efeito. [p. 83]

4.4.4 (...) A conservação do sistema depende aqui de sua atividade, não é simplesmente realizada com ela. A atividade de autoconservar-se através da renovação dos estados de equilibro, que a dependência do ambiente não permite que se prolongue – conservação, pois, como produção contínua -, é o conteúdo do funcionamento do sistema, e com isto o sentido de sua existência. [p. 85]

4.5 CAPÍTULO V – DEUS É UM MATEMÁTICO?

4.5.1 (...) os diferentes sentidos em que falamos de uma natureza “matemática” não podem deixar de afetar também a idéia de um criador matemático. (...) A alma humana é o único ser no mundo – mas não do mundo – que foi criado por Deus, ou mesmo que foi criado de Deus, e que por isso é em certo sentido divina, ao passo que céus e terra (...) são obra de suas mãos, e não sua imagem. A separação essencial entre Deus e o mundo repete-se ou reflete-se na separação essencial entre espírito e natureza. A natureza, criada do nada, carece de espírito e executa cegamente a vontade de Deus, por quem unicamente ela subsiste. Desta forma tornou-se metafisicamente possível a idéia de uma natureza sem espírito, ou “cega”, que não obstante comporta-se com lei – isto é, contém uma ordem inteligível sem que possua entendimento [pp. 92-93-94]

4.5.2 (...) Deus é um puro matemático? (...) Começamos a suspeitar que o “material” que o Grande Arquiteto teve que utilizar para concretizar suas idéias possuía uma natureza própria que lhe era desconhecida e que não estava prevista em seu plano – propriedades que no curso do desenvolvimento mecânico encontraram ocasião para realizar alguma coisa das possibilidades ocultas da substância original. Nós mesmos somos um exemplo disso. Seduzido desta forma para a construção de uma multiplicidade que possui sua tendência própria, o matemático não sabe o que está criando. Não tem olhos que vejam para ele, não tem ouvidos que ouçam. Assemelha-se antes ao demiurgo dos gnósticos, que criou o mundo sem saber o que estava fazendo, como o demiurgo de Platão, que criou o mundo a partir da totalidade do saber. [pp. 97/116]

4.5.3 (...) uma biologia filosófica, sem a qual não pode por um lado existir uma filosofia do ser humano, e por outro uma filosofia da natureza, e um novo exame de causa sem a qual estas três não podem ser colocadas sob o mesmo teto. Mas sobre o contencioso desta tentativa (...) “a partir do testemunho imanente de sua criação”, concluo que o criador deve ser diferente daquilo que o metafísico Jeans entende – na mesma medida em que a criação, isto é, todo quanto existe, é diferente daquilo que o físico matemático Jeans imagina. Por isso nossa resposta final à pergunta “Deus é um matemático?” – ou seja, ele é essencial e simplesmente um matemático, mesmo apenas com referência ao universo material – é um decidido “não”. [pp. 116-117]

4.6 CAPÍTULO VI – MOVIMENTO E SENSAÇÃO

4.6.1 Três características distinguem a vida do animal da vida da planta: mobilidade, percepção, sensação. A ligação necessária entre movimento e percepção é evidente, já tendo sido tratada por Aristóteles; a ligação necessária entre movimento e sensação (emoção) necessita de um estudo mais minucioso; este estudo irá mostrar que as três capacidades são a manifestação de um princípio comum. [pp. 123-124]

4.6.2 A locomoção, o animal, se volta para um objeto ou dele se afasta, quer dizer, ou é perseguição ou é fuga. Uma perseguição mais prolongada, onde o animal contende suas forças motoras com as da presa que busca alcançar, evidencia não apenas capacidades motoras e sensoriais desenvolvidas mais também pronunciadas forças de sentimento. [p. 125]

4.6.3 Sensibilidade, sentimento e mobilidade são diferentes manifestações deste princípio da mediatez – portanto do essencial “distanciamento” da existência animal. Se o sentimento envolve a distância entre necessidade e satisfação, então ele tem sua razão de ser na original separação entre sujeito e objeto, e coincide com a situação da percepção e da capacidade de movimento, que envolvem também o elemento da distância. “Distância” em todos estes aspectos, envolve a separação sujeito-objeto. [p. 126]

4.6.4 A separação entre relação direta e relação mediata com o ambiente coincide com a separação entre planta e animal, devendo pois coincidir com a diferença entre suas formas de metabolismo. (...) Com as raízes a planta “inventou” o meio eficiente para aproveitar as vantagens inerentes a um organismo dotado da fotossíntese. Possuindo-a, a planta está libertada da necessidade (mas também privada da possibilidade) do movimento [pp. 127-128]

4.6.5 O caráter mediato da existência animal se encontra na raiz de mobilidade, percepção e sentimento. Ele produz o indivíduo isolado que se defronta com o mundo. Mundo este que ao mesmo tempo convidativo e ameaçador. Ele contém as coisas de que o animal necessita, e este tem que pôr-se a caminho e procurá-las. (...) A sobrevivência passa a ser uma questão de comportamento em determinadas ações, em vez de estar garantida por um funcionamento orgânico bem adaptado. (...) o caráter indireto da existência animal disponibiliza em sua vigilância as possibilidades gêmeas do prazer e da dor, ambas casadas com o esforço. [pp. 129-130]

4.6.6 Em última análise é o fato que decide a disputa entre animal e planta. A constituição original do organismo, mesmo no estágio unicelular, expressa a individualidade como ousadia da liberdade com que uma forma mantém sua identidade ao longo da mudança da matéria. A liberdade é compensada dialeticamente pela necessidade, a autonomia pela dependência. (...) O fosso aberto entre sujeito e objeto, que abre a percepção à distância e que se reflete na exacerbação de desejo e medo, de satisfação e decepção, de prazer e dor, jamais deve ser fechado. Mas a liberdade da vida, em sua crescente ampliação, encontrou espaço para todas as formas de relação – perceptiva, ativa e sensitiva – que justificam o fosso no momento de transpô-lo, e que através de rodeios reconquistam a unidade perdida. [p. 131]

4.7 CIBERNÉTICA E FINALIDADE: UMA CRÍTICA

4.7.1 O modelo cibernético reduz a natureza animal aos dois fatores da percepção do movimento, enquanto na realidade ela é composta pela tríade constituída pela percepção, movimento e sentimento. Mais fundamental do que as outras duas capacidades, o sentimento, que estabelece a ligação mútua entre as duas, é a tradução animal do impulso básico que já se encontra em ação no plano pré-animal indiferenciado da constante realização do metabolismo. (...) Para o instinto da autoconservação não existe nenhuma analogia na máquina, unicamente, como antíteses da autoconservação, a entropia da morte. [p. 149]

4.7.2 De acordo com a cibernética, a sociedade é uma rede de comunicação para transmissão, intercâmbio e armazenamento de informações, e é isto que sustenta. A respeito da sociedade jamais foi apresentado conceito mais vazio. (...) O agir intencional, seja ele individual ou social, por si mesmo está voltado para o bem. De acordo com um ponto de vista antigo, a escala dos bens menores ou maiores que se tornam objeto do desejo, e com isto são capazes de motivar o comportamento, culmina em um bem mais elevado, o summum bonum. No caso do ser humano isto poderia perfeitamente – num sentido muito distante do cibernético, encontrar-se em estado de “formação”. [pp. 149-150]

4.7.3 Materialistas, behavioristas e cibernéticos efetivamente assumem a posição cartesiana, sem no entanto arcarem com a carga metafísica de sou doutrina das duas substâncias. (...) A posição metafísica é a do materialismo, que como doutrina geral do ser tem que enfrentar o problema que se manifesta com o fato da vida consciente. (...) O aspecto relevando do “epifenomenalismo” consiste em suas teses negativas ocultas. Sua tese manifesta e positiva, de que a matéria seria responsável pelo espírito, é apresentada sem qualquer tentativa de mostrar como é possível se harmonizar esta realização com as propriedades conhecidas da matéria. [pp. 150-151]

4.7.4 Um ponto facilmente esquecido é de que a “matéria” que seja obrigada a prestar contas pelo espírito não é mais a mesma matéria com a que foi assumida pela ciência no expurgo dualista. O materialismo herdou a herança do dualismo, sem perceber com clareza que a herança que percebia estava onerada por uma obrigação que ele jamais seria capaz de pagar com seus recursos próprios: a obrigação de também teoricamente explicar aqueles fenômenos que antes haviam sido contestados à metade desaparecida da possessão dualista. (...) Mas não deixamos de conceder pelo menos uma virtude ao epifenomenalismo: ele desfaz-se do conceito absurdo de um determinismo intramental e faz o determinismo voltar ao lugar que lhe é próprio, isto é, o único onde ele tem sentido. – o reino da matéria. [pp. 152-153]

4.7.5 No fim, com o aparecimento do monismo materialista, foi possível confiar tranquilamente todo o problema do determinismo à onipotente matéria, onde ele cessou de ser um problema psicológico. Constitui um mérito do epifenomenalismo ele haver percebido a verdade de que o determinismo no sentido científico só pode significar uma descrição da matéria, não encontrando por isso nenhuma aplicação fora dela. Portanto, se existir determinação total (o que evidentemente ninguém ainda provou), então o espírito só pode ser um epifenômeno da matéria, sem causalidade própria, nem exterior nem interior. [p. 157]

4.7.6 (...) sua completa prescindibilidade para a série das ocorrências transforma sua vã presença em um enigma que provoca mais vexame do que qualquer outro de que o dualismo tenha desistido, fornecendo ainda por cima um comentário mefistofélico ao provérbio de que a natureza não faz nada em vão. De fato, admitir esta prescindibilidade, que equivale a uma acusação de logro, significa atribuir tranquilamente à natureza o papel de um “Deus mentiroso”, uma idéia cujo caráter alarmante levou Descartes a confiantemente buscar refúgio em um Deus bondoso. (...) Dessa forma a tentativa não apenas deixa de explicar a si mesma e passa ser inexplicável de acordo com seus próprios princípios, mas com a desvalorização epifenomenalista ela nega valor aos seus próprios resultados, negando ao pensamento em geral toda validez possível, por considerá-lo essencialmente alheio a todo pensar. É o cretense afirmando que todos os cretenses são mentirosos. [pp. 157-158]

4.8 A NOBREZA DA VISÃO

4.8.1 Desde os dias da filosofia grega, o olho tem sido celebrado como o sentido mais excelente. A mais nobre das atividades do espírito, a theoria, é descrita em metáforas tiradas predominantemente da esfera visual. (...) O sentido da visão não apenas foi o preferido para fornecer as analogias para a superestrutura intelectual, mas serviu também em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para os outros sentidos. Mas este sentido é de fato muito especial. Por si só ele é incompleto: para exercer seu ofício de reconhecer precisa ser completado por outros sentidos e funções; suas maiores vantagens são também suas mais importantes fraquezas. (...) Esta distinção única da visão consiste naquilo que por antecipação nós gostamos de chamar de imagem, palavra que implica três características: 1) simultaneidade na apresentação de uma variedade, 2) neutralização da causa de afecção do sentido, 3) distância no sentido espacial e espiritual. [pp. 159-160]

4.8.2 Com o ouvido a situação é clara: de acordo com sua própria natureza, o som só pode “dar” uma realidade dinâmica, jamais uma realidade estática. (...) nós compreendemos por que para nossos ouvidos nós não temos coisa alguma que corresponda às pálpebras dos olhos. Não se sabe quando um som irá acontecer. Quando ele acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente, isto é, uma modificação no ambiente, e não de uma existência constante: e como uma ocorrência, isto é, uma modificação viva, os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade. (...) A razão mais profunda para esta contingência fundamental do sentido da audição é o fato de ele estar relacionado ao acontecer, e não ao existir, ao vir-a-ser e não ao ser. Desta forma o ouvir, ligado à sucessão e não oferecendo nenhuma variedade simultânea coordenada de objetos, é inferior ao ver no que se refere à liberdade que ele garante para quem o possui. [pp.160-161/163]

4.8.3 (...) Efetivamente a visão, mais do que qualquer outro sentido, nega a experiência da causalidade: causalidade não é um dado visual. (...) a visão não é o caso primário e sim o caso mais sublime da percepção sensorial, e repousa sobre a infra-estrutura de funções elementares nas quais o intercâmbio com o mundo é sustentado em formas mais concretas e palpáveis. (...) O testemunho da visão não falsifica a realidade ao ser completado pelo testemunho das outras camadas da experiência, sobretudo da capacidade de movimento e do sentido do tato; quando rejeita orgulhosa suas exigências, sua verdade se torna estéril. [pp. 172-173]

4.9 CAPÍTULO IX – HOMO PICTOR: DA LIBERDADE DA IMAGEM

4.9.1 O “humano” tem que designar então alguma coisa que justifique a atribuição deste nome, por mais extremas que sejam as diferenças físicas. Com isto é levantada a pergunta pelos traços, isto é, pelos meios de reconhecimento, e se possível por um meio de reconhecimento privilegiado, que ateste com precisão a igualdade essencial do ser, ou que forneça a mesma possibilidade de estabelecer a diferença em relação ao animal, não importando qual seja a construção orgânica. (...) A linguagem é certamente o fenômeno humanamente mais constitutivo e central, mas em sua variedade é também o mais difícil de ser apreendido, e também o que tem sua interpretação filosófica bem mais discutida e onerada. (...) Maior esperança de um acordo preliminar existe sobre o que é uma imagem do que sobre o que é uma palavra. De fato, uma compreensão da capacidade da imagem, que é uma capacidade mais simples, pode contribuir para a compreensão do problema muito mais complexo da fala. [pp. 181-182]

4.9.2 Para nos convencermos espontaneamente de que nenhum mero animal seria capaz nem haveria de produzir uma imagem, basta em primeiro lugar a ausência de utilidade de toda mera representação. (...) a representação imagética apropria-se do objeto de uma nova maneira não-prática, e precisamente este fato, de o interesse nele poder ser inerente ao seu eidos, atesta uma relação nova com o objeto. [pp. 182-183]

4.9.3 (...) a imagem precisa distinguir-se de seu suporte físico, e o objeto representado distinguir-se de ambos. Com esta dupla distinção, a semelhança da imagem pode ser percebida como “mera semelhança”. Através da semelhança o objeto percebido diretamente é apreendido não como ele mesmo, mas sim como representando um outro. Ele só se encontra aí para representar um outro, e este outro não é mais do que representado, de modo que paradoxalmente o membro intermediário, ou o eidos como tal, passa a ser o objeto real da apreensão. (...) Em nossa busca pelas condições da possibilidade de fazer imagens nós fomos levados, assim, da capacidade de perceber a semelhança para a capacidade mais fundamental de separar o eidos da existência, ou a forma da matéria. [p. 190]

4.9.4 (...) Eidos, isto é, “fenômeno”, “aparência”, é objeto dos sentidos, mas não é objeto inteiro dos sentidos. Na percepção, o objeto exterior é apreendido não apenas como algo que é “assim”, mas também como algo que está “aí”. (...) cada vista representa igualmente o objeto de maneira “simbólica”, embora como símbolo uma possa ser superior à outra e gozar da preferência para representar o objeto (...). [pp 191-192]

4.9.5 (...) a mesma coisa que em nosso exemplo é realizado pela fala (ligada ou a um apontar direto para o objeto, ou a um apelo à memória) também é realizado essencialmente através do desenhar, do reconhecer, do admitir ou do rejeitar uma imagem representativa, e esta circunstância permite-nos reconhecer que o reino da palavra não é o lugar exclusivo e necessário do fenômeno da verdade. A representação imagética, encontrando-se mais próxima do mundo da percepção do que o simbolismo abstrato da linguagem, e menos do que esta tendo a ver com os objetivos práticos da comunicação, é um exercício fundamental do empenho humano pela verdade no que se refere ao mundo visível. Todo retratar de coisas preserva delas um conhecimento, caindo também sob os critérios do conhecimento. [p. 204]

4.10 TRANSIÇÃO – Da filosofia do organismo à filosofia do ser humano

4.10.1 No refletir-se sobre o eu, a divisão sujeito-objeto, que teve início na evolução animal, atinge sua forma mais extrema. Ela estende-se agora até o centro da vida sensitiva, que desta forma torna-se dividida em si mesma. Só através da distância incomensurável do ser-objeto-de si-próprio é que o ser humano pode-se “possuir”. Mas ele se possui, ao passo que animal algum se possui a si próprio. (...) Como a satisfação humana difere da animal e a ultrapassa de longe na extensão das possibilidades, o mesmo pode-se dizer do sofrimento humano, embora o ser humano também participe da escala do sentir animal. Mas só o ser humano é capaz de ser feliz e infeliz, graças à medida do seu ser em padrões que não se restringem à situação imediata. (...) O suicídio, este privilégio exclusivo do ser humano, demonstra o grau extremo em que o ser humano pode tornar-se objeto de si mesmo. [p. 209]

4.10.2 Mas a busca da essência do ser humano tem que ser encaminhada através dos encontros do ser humano com o ser. Estes encontros não apenas fazer aparecer a essência do ser humano, mas na verdade eles a constroem, porque neles ela se decide em cada momento. A própria capacidade do encontro é a essência básica do ser humano: esta é, portanto, a liberdade, e seu lugar na história, que por sua vez só é possível através daquela essência básica trans-histórica do sujeito.
Toda imagem da realidade surgida do encontro histórico inclui uma imagem do eu, de conformidade com ela o ser humano existe enquanto a imagem for a sua verdade. Mas a possibilidade da história, colocada no ser humano – precisamente a sua liberdade -, não é ela mesma histórica, e sim ontológica; e uma vez descoberta, ela mesma passa a ser o fato central da evidência de onde toda ontologia se alimenta. [pp. 209-210]

4.11 CAPÍTULO X – DO USO PRÁTICO DA TEORIA

4.11.1 A ciência da “natureza da ação” é uma mecânica ou dinâmica da natureza. Para tal ciência, Galileu e Descartes forneceram as condições especulativas e o método da análise e sínteses. Ao criarem uma teoria com potencial tecnológico imanente, efetivamente eles puseram em marcha àquela fusão de teoria e prática com que Bacon sonhava. Antes de dizer algo mais sobre a espécie de teoria que se presta à aplicação técnica, ou mesmo que está intimamente orientada para este espécie de uso, é necessário se dizer alguma coisa sobre o uso. [p. 213]

4.11.2 (...) a moderna teoria não se basta a si mesma como fonte da qualidade humana que a torna benéfica. O fato de seus resultados poderem ser separados dela e passados adiante aos que não participaram do próprio processo teórico constitui apenas um aspecto da questão. Por sua ciência, o próprio cientista não está melhor qualificado do que os outros para reconhecer o bem da humanidade, nem mais inclinado a com ele preocupar-se. Benevolência e responsabilidade têm que ser trazidas de fora para completar o conhecimento devido à teoria. Não resulta da própria teoria. (...) a ciência é “isenta de valores” (...) os valores não são objeto da ciência, ou pelo menos não são objetos de “conhecimento científico”. [pp. 217-218]

4.11.3 “Transcendência” (...) implica objetos que estão acima do ser humano, e é com estes objetos que a teoria clássica se ocupa. A teoria moderna trata de objetos que estão abaixo do ser humano. Destes objetos não pode ser extraída relativa aos fins. A expressão “abaixo do ser humano”, que contém um juízo de valor, parece contradizer a “isenção de valores” da ciência. Mas esta liberdade significa uma neutralidade, tanto da parte dos objetos como da parte da ciência: da parte dos objetos, sua indiferença em relação ao todo valor que lhes possa ser “dado”. Mas aquilo a que por si mesmo falta valor interior submetido àquele que é o único em relação ao qual isto pode alcançar valor, e este é o ser humano e a vida humana, a única fonte e lugar de referência do valor em si. [p. 218]

4.11.4 Um uso é prático quando inclui ação exterior que provoque ou que impeça uma modificação no mundo ambiente. (Portando, a aplicação da matemática na física não é prática, mas sim teórica.) [p. 220]

4.11.5 No início do século 18, Vico proclamou o princípio de que o ser humano só pode compreender aquilo que ele próprio fez. Daí ele conclui que não é a natureza que, como criada por Deus, se opõe ao ser humano, ma sim a história, que á criatura do ser humano, que pode por este ser compreendida. (...) As maneiras quase-técnicas de produção da natureza – ou a natureza como produtos e produto dela própria – são seu único aspeto que pode ser conhecido e imitado, enquanto as essências em si não são elas próprias reconhecíveis, da qual a ciência deve fornecer uma visão para descobrir sua maneira de proceder, expressa popularmente o pensamento de que a distinção ente natural e artificial, por mais fundamental que tenha sido para a filosofia clássica, deixou de ter sentido. [p. 225]

4.11.6 Parece, portanto, que prática e teoria conjuraram-se pra nos entregar a um incessante dinamismo, e a nossa vida, privada de um presente duradouro, sempre está voltada para o futuro. (...) Essa teoria teria que assumir novamente a pergunta pelos fins, que deixa em aberto a radical indefinição do conceito de “felicidade”, e onde a ciência, entregue à aquisição dos meios para a felicidade, não tem direito a ter voz. A advertência a que a ciência seja aproveitada no interesse do ser humano, no interesse do seu maior bem, permanece vazia enquanto não foi conhecido qual é o maior bem do ser humano. [p. 230]

4.12 CAPÍTULO XI – GNOSE, EXISTENCIALISMO E NIILISMO

4.12.1 (...) O que havia começado como o encontro entre um método e uma matéria, terminou por conscientizar-me de que o existencialismo, que em si pretende explicar as estruturas básicas da existência humana (...) era ele próprio a filosofia de uma determinada situação histórica da existência humana. (...) A solução “existencialista” da gnose, tão bem justificada (...) por seu êxito hermenêutico, é um convite à sua contrapartida natural, à tentativa de uma leitura “gnóstica” do existencialismo. [p. 234]

4.12.2 Que o mundo foi criado por alguém – por um ou por vários – é em geral, no estilo mitológico, considerado como estabelecido, embora em sua gênese prevaleça de muitas maneiras uma necessidade quase impessoal de um instinto sombrio. Mas quem quer que seja o criador, o ser humano não lhe deve nenhuma devoção, nem respeito a sua obra. Sua obra, embora inclua misteriosamente o ser humano, não fornece, tampouco com sua vontade, a norma para o comportamento humano. Com um poder que se afastou profundamente da divindade, e de que o ser humano, com seu espírito só conservou de Deus o poder de agir, porém de um agir sem compreensão e sem bondade. [pp. 239-240]

4.12.3 Por isso o mundo é produto, ou mesmo a encarnação da negação do conhecimento. (...) Conhecimento, gnose, pode livrar o ser humano desta escravidão. (...) O mundo tem que ser vencido, e o mundo que se degradou em um sistema de poder só pode ser vendido pelo poder. É verdade que de forma alguma se trata de uma dominação tecnológica. Por um lado o poder do mundo é vencido pelo poder do redentor, que chega de fora e penetra na sua estrutura fechada, e por outro pelo poder do conhecimento por ele trazido, que qual instrumento mágico supera a força dos astros, e através de suas ordens abre à alma uma vereda. Por mais diferente que isto seja da moderna relação de poder entre o ser humano e a causalidade do universo, no entanto existe uma semelhança ontológica no fato formal de o confronto do poder ser a única relação que ainda resta com o todo da natureza. [pp. 240-241-242]

4.12.4 (...) devemos admitir que na gnose e no existencialismo a negação da norma objetiva foi desenvolvida em níveis teóricos muito diferentes, e que o antinomismo gnóstico nos parece primitivo quando comparado à subtileza conceitual e à clareza histórica de sua contrapartida moderna. Em um conceitual e à clareza histórica de sua contrapartida moderna. Em um caso o que foi liquidado foi a herança moral de mim anos de civilização antiga; e no outro acrescentam-se a isto dois mim anos de metafísica cristã com pano de fundo para a idéia de uma lei moral. (...) Nietzsche referiu-se à raiz da situação niilista com as palavras “Deus está morto”; com isto ele estava se referindo em primeiro lugar ao Deus cristão. Os gnósticos, caso desejassem formular de maneira parecida a base metafísica de seu niilismo, poderiam ter dito: “O Deus dos cosmos está morto”, isto é, como Deus – para nós ele deixou de ser divino e de conferir orientação à nossa vida. [p. 244]

4.12.5 (...) Para Nietzsche o sentido do niilismo é “que os supremos valores se desvalorizem”, e a razão desta desvalorização é “a visão de que não temos o menor direito de estabelecer um além ou um em-si das coisas que seja ‘divinamente’ a moral em pessoa”. Junto ao discurso da morte de Deus, esta frase confirma a constatação de Heidegger de “que, no pensamento de Nietzsche, as palavras Deus e Deus cristão são empregadas para designar o mundo supra-sensível em si. (...) “A palavra ‘Deus está morto” significa que o mundo supra-sensível não tem mais força operante”. [pp. 244-245]

4.12.6 Não se pode deixar de perceber uma diferença fundamental entre o dualismo gnóstico e o existencialista: o ser humano gnóstico foi lançado dentro de uma natureza contrária a Deus, e por isso contrária ao ser humano; o ser humano moderno, em uma natureza indiferente. Só esta última significa o vácuo absoluto, o abismo verdadeiramente sem fundo. O hostil e demoníaco sempre é ainda antropomórfico, familiar mesmo na alienação, e o contraste, como tal, confere direção à existência – uma direção negativa, na verdade, mas que tem atrás de si a sanção da transcendência negativa, de que a positividade do mundo é a contrapartida qualitativa. À natureza da ciência moderna nem sequer se confere esta qualidade antagônica, desta natureza não se pode obter nenhuma orientação. Isto torna o niilismo moderno muito mais radical e desesperado do que jamais poderia ter sido o niilismo gnóstico, com todo o seu horror ao mundo e sua revolta contra as leis do mundo. Que a natureza não se preocupe, é este o verdadeiro abismo. Que só o ser humano se preocupe, não tendo diante de si, em sua finitude, outra coisa a não ser a morte, que ele esteja só com sua contingência e com a ausência objetiva de sentido de seus projetos de sentido, é na verdade uma situação sem precedentes. [pp. 251-252]

4.13 CAPÍTULO XII – IMORTALIDADE E EXISTÊNCIA ATUAL

4.13.1 (...) o ser humano atual está pouco inclinado a aceitar pensamento da imortalidade. (...) Inicio com o mais terreno e o mais empírico conceito de imortalidade: a sobrevivência na imortalidade da fama. (...) A dimensão desta sobrevivência é a própria dimensão em que ela foi conquistada: a comunidade política. De acordo com isto, a fama imortal é permanência das honras públicas, assim como a comunidade é permanência da vida humana (...). O que esta “imortalidade” possui de seletivo – o fato de só admitir poucos e de excluir a maioria – ainda precisa ser aceito em si, se é que podemos confiar na justiça de uma tal seleção. [pp. 253-254-255]

4.13.2 Voltemo-nos, pois, ao conceito não-empírico e realmente substancial da imortalidade: a sobrevivência da pessoa em um futuro no além. (...) se deixarmos de lado o mero pavor da criatura diante da morte, recaem sob dois títulos: a justiça, e a distinção entre aparência e realidade, de que a doutrina da mera fenomenalidade do tempo é um caso particular. As duas possuem em comum o fato de atribuírem ao ser humano o status metafísico de sujeito moral, e com isto ao pertencer a uma ordem moral ou inteligível à margem do sensível. (...) Em vez de negá-la, nós reivindicamos nossa condição efêmera. Não queremos renunciar ao medo e ao orgulho do fim; insistimos, mesmo, em defrontar-nos com o nada e ter a força de conviver com ele. Assim o existencialismo, este rebento extremo do clima espiritual moderno, ou da desarmonia espiritual moderna, lança-se nas águas da mortalidade sem segurança de nenhum salva-vidas escondido. E nós, aderindo ou não aderindo à sua doutrina, como filhos do nosso tempo compartilhamos de seu espírito o suficiente para ocuparmos nossa posição solitária no tempo entre os dois nadas do antes e do depois. [pp. 256-258]

4.13.3 (...) Embora o durar sempre não seja um conceito verdadeiro, a eternidade pode ter outros significados – e ter como o temporal uma relação de que nossa experiência mortal, transcendendo seu agir no fluxo do acontecer, vez por outra dá testemunho. (...) Agir como se estivéssemos em face do fim é agir como se estivéssemos em face da eternidade – um e outro sendo então entendidos como invocação da verdade completa do eu. Mas entender o fim desta maneira significa exatamente entendê-lo sob uma luz além do tempo. [pp. 258-259]

4.13.4 Buscar (...) um conceito sustentável de imortalidade está em consonância com a atitude moderna, que nós descobrimos tão penetrada pela consciência da essencial temporalidade do nosso ser, de sua referência mais íntima co a situação finita – em que manifesta tão grande desconfiança sobre a possibilidade, ou mesmo contra o mero sentido de uma existência infinitamente prolongada. (...) Por mais questionável que tenham achado o veículo da fama, por mais errônea a associação entre mérito temporal e retribuição eterna; e por menos válido que seja também o argumento da infinita perfectibilidadde de uma pretenso direito a ela – a aspecto da justiça em si, ao contrário da conclusão inteiramente inaceitável de uma substância indestrutível, ainda faz movimentar-se em nós um sim pela dignidade transcendente atribuída à esfera da decisão e da ação. (...) Destas imagens gostaria de escolher duas: o “livro da vida” e o “retrato” transcendente. [p. 261]

4.13.5 Que pode dizer-nos o símbolo do “livro da vida”? Na tradição judaica ele significa uma espécie de grande livro celeste em que nossos nomes são registrados de acordo com nossos méritos – se possível “para a vida”, isto é, para nossa vida, a vida de cada pessoa. (...) também podemos (...) entender o conceito do livro de uma forma diferente, a saber, que ele seria preenchido não com nomes e contas mas sim com os próprios feitos. Noutras palavras, estou falando da possibilidade de que os feitos se inscrevam a si próprios no registro eterno do tempo; que, seja o que for que se pratique – para além de suas repercussões e, por fim, de seu desaparecimento no tecido causal do tempo -, para todo o futuro isto seja inserido em um reino transcendente, marcando-o segundo as leis da causa e efeito, que são diferentes das do mundo, acrescentando sempre mais coisas ao protocolo inconcluso do ser e sempre de novo adiando o tremendo balança final. [pp. 261-262]

4.13.6 Busquemos ajuda voltando-nos para a outra parábola, a da “imagem” transcendente que surge traço por traço no nosso agir temporal. Encontramo-la na literatura gnóstica, sobretudo do ciclo iraniano. (...) uma delas é a idéia do sósia celeste da pessoa da terra, de quem a alma que parte vaio ao encontro após a morte. (...) Segundo esta versão, parece que cada um tem o seu alter ego “preservado” no mundo do alto enquanto ele se esforça aqui embaixo, mais que, no tocante ao seu estado definitivo, o alter ego está entregue à sua responsabilidade: como o eu eterno da pessoa, ele cresce com as provocações e os feitos desta, e sua forma é completada por seus esforços. (...) Mas o encontro como tal significa o encerramento bem-sucedido da caminhada da terrestre da alma, culminando em uma fusão e união que completa o que por algum tempo esteve separado. [pp. 262-263]

4.13.7 Mas ao lado desta versão individual também existe uma versão coletiva do simbolismo do retrato, que relaciona nossos feitos não com uma eternidade do nosso eu particular mas sim com a perfeição do próprio eu divino. [p. 263]

4.13.8 Da metafísica, para continuarmos no mesmo estilo especulativo, resultam algumas conseqüências éticas sugeridas por meu mito. A primeiro é a importância transcendente de nosso agir, da maneira como vivemos nossa vida. Se, no sentido de nosso relato, o ser humano foi criado não tanto “à” imagem de Deus quanto “para” a imagem de Deus – se nossos currículos de vida se tornam traços na face divina, então nossa responsabilidade não é determinada unicamente por suas conseqüências no mundo, onde seu peso muitas vezes é pequeno, mas atinge uma dimensão em que a capacidade de produzir efeitos se mede por normas transcausais de natureza interna. (...) O indivíduo é por natureza temporário, não eterno; e a pessoa em particular, fiduciária mortal, tem o gozo da mesmidade durante o instante do tempo como meio através do qual a eternidade se expõe às decisões do tempo. Como acionados no contexto do vir-a-ser, isto é, como únicos e efêmeros, os eus pessoais são apostas do eterno. Assim, nas ocasiões irrepetíveis das trajetórias finitas da vida, o resultado precisa sempre de novo ser decidido. Uma duração ilimitada haveria de embotar o fio da decisão e privar de sua urgência os apelos da situação. [pp. 267-268]

4.13.9 (...) o ser humano não possui nenhum direito moral ao dom da vida eterna, nem tem direito a queixar-se de sua mortalidade. (...) Pois em si não existe nenhuma necessidade de que o mundo exista. Por que existe Algo e não Nada? – esta irrespondível pergunta da metafísica deveria preservar-nos de pressupor a existência como um axioma e depois considerar a finitude como uma marcha adquirida, ou como uma negação de seus direitos. Pelo contrário, o fato da existência é em si o mistério dos mistérios – que nosso mito tentou refletir simbolicamente. Renunciando à sua própria invulnerabilidade, a razão eterna permitiu que o mundo existisse. É a esta autonegação que toda criatura deve sua existência, como ela recebendo o que pode receber do além. [p. 268]

4.13.10 (...) O que importa (...) é salvar toda a aventura mortal em si, antes que se possa pensar em um eventual êxito ou fracasso no imortal. A ameaça ao mundo vivo por parte de nossa tecnologia, de que o fantasma da bomba atômica é apenas o aspecto mais dramático (e talvez o mais fácil de ser controlado), diz que a visão aqui desenvolvida, que em nosso lugar do universo a imagem de deus corre perigoso não pode ser enfrentado por nenhuma moralidade oculta da existência privada, só por um agir coletivo público da ação atual, e não é possível prever-se que alianças com o mal terão que ser feitas pelo bem para evitar o ainda pior, ou mesmo para impedir o inadmissível. (...) Em nossas mãos inseguras nós seguramos literalmente o futuro da aventura divina na terra, e não podemos desapontá-la, mesmo que quiséssemos desapontar-nos. [p. 269]

 

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