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domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Princípio da Vida (Hans Jonas)

 

 

JONAS, Hans. O Princípio da Vida. Trad. Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, Editora Vozes. 2004, 278 p.

3 ESPECIFICAÇÃO DO REFERENTE UTILIZADO: O Princípio da Vida

4 DESTAQUES CONFORME O REFERENTE

4.1 CAPÍTULO I – O PANVITALISMO E O PROBLEMA DA MORTE

4.1.1 Para os primórdios da interpretação humana do ser, a vida se encontrava por toda parte, e o ser confundia-se com o ser vivo. “Animismo” é a forma amplamente difundida deste estágio, “hilozoísmo” uma de suas formas conceituais refletidas mais tarde. A “alma” ocupava o todo da realidade, e ela se encontrava a si própria em toda parte. A matéria “pura”, isto é, matéria “morta”, não fora ainda descoberta (...). Pelo contrário, a mais natural de todas as suposições, ainda por cima amplamente apoiada pela aparência, é a de que o mundo seja vivo. [p. 17]

4.1.2 (...) só depois que pela revolução copernicana os horizontes do ser humano foram ampliados para as distâncias do universo é que o lugar proporcional da vida no conjunto das coisas tornou-se bastante pequeno para passar a ser aquilo que desde então passou a constituir o conceito de “natureza”. [p. 17]

4.1.3 (...) Ao ser humano primitivo (...) o panvitalismo era uma verdade ligada à sua perspectiva, e só uma mudança de perspectiva conseguiria destroná-la. (...) Nesta visão do mundo, o mistério com que o ser humano se defronta é a morte, que contradiz todo quanto ele compreende. (...) Na medida em que a vida é considerada como o estado primário das coisas, a morte destaca-se como o enigma que perturba. (...) Antes de espantar-se com o milagre da vida, o ser humano espantou-se com a morte e procurou descobrir-lhe o significado. [pp. 17-18]

4.1.4 (...) A metafísica procura resolver esta contradição básica, de que tudo é vida e que toda vida está sujeita a morte. Ela se expõe ao desafio radical, e para salvar a totalidade das coisas, nega a morte. (...) Querer interpretar a morte significa (...) reconhecer que ela é estranha ao mundo (...). É este o paradoxo: precisamente a importância do culto aos mortos nos inícios da humanidade, a pujança da idéia da morte no princípio da reflexão humana, dão testemunho de um fundo mais poderoso da idéia universal da vida: o ser só se torna compreensível e real como vida; e a permanência do ser que se pressente só pode ser entendida como permanência da vida – para além da morte. [pp. 18-19]

4.1.5 O pensamento moderno, que teve início com o renascimento, encontra-se na posição exatamente oposta: o natural, aquilo que se pode compreender, é a morte, o que constitui um problema é a vida. (...) É o estado “natural” (...). No ser físico, não só no que diz respeito à relações de quantidade, mas no tocante também à sua verdade ontológica, a não-vida é a regra, e a vida uma exceção e um enigma. (...) O próprio fato de termos hoje que discutir o problema teórico da vida em lugar do da morte atesta o status da morte como o estado natural, como aquilo que se explica por si mesmo. (...) agora a hipótese abrangente é o pan-mecanicismo (...) Considerar a vida como problema significa admitir sua alienação no mundo mecânico que este é; explicá-la – neste estágio de ontologia universal da morte – significa negá-la, fazer dela uma variante das possibilidades do sem-vida. [pp. 19-20]

4.1.6 (...) No esquema moderno (...) o homem-máquina, representa simbolicamente o que no antigo foi representado pelo “hilozoísmo”: a usurpação de um setor negado pelo outro, que goza do monopólio ontológico. (...) no novo monismo uma forma da pergunta está voltada para trás: não mais como surgiu a morte, mas sim como surgiu a vida neste mundo sem vida. [p. 21]

4.1.7 O dualismo é o elemento de ligação que historicamente uniu os dois extremos, que até agora foram aqui contrapostos um ao outro; efetivamente, foi ele o veículo para o movimento que levou o materialismo da época atual, como um resultado não intendido ou mesmo paradoxal (...). [p. 22]

4.1.8 (...) Um dos elementos que podem ser encontrados na origem e na história do dualismo é sem dúvida alguma o tema da morte. [p. 22]

4.1.9 Soma-sema, “o corpo – um túmulo”, esta (no orfismo) a primeira resposta dualista ao problema da morte, que agora, da mesma forma que o da vida, se havia transformado no problema da relação entre duas entidades diferentes, corpo e alma. O corpo, de per si, é a “sepultura da alma”, e a morte corporal é a ressurreição desta. [p. 23]

4.1.10 No ponto mais alto do desenvolvimento dualista, na gnose, a comparação soma-sema, que originalmente permanecera limitada ao ser humano, expandiu-se para o universo: o mundo inteiro é sema, túmulo da alma ou do espírito, daquela estranha inclusão no que de resto não tem relação alguma com a vida. [p. 24]

4.1.11 O caminho do dualismo (...) define a ordem cronológica reversível dos dois pontos de vista, e o próprio dualismo representa o período do pensamento até agora mais importante na história do espírito, cuja produção não pode perder-se, mesmo depois de haver sido superada. (...) Toda reflexão sobre o ser que veio mais tarde não é, por sua natureza interior, pós-dualista apenas do ponto de vista cronológico, como a anterior era essencialmente pré-dualista. (...) da mesma forma a consideração pós-dualista do ser ocupa-se inevitavelmente com as duas peças deixadas pelo dualismo, frente às quais ela só consegue ser monista ao preço de escolha ontológica entre os dois, de uma opção por um ou por outro – pelo menos enquanto a herança metafísica do dualismo ainda forçar o reconhecimento do seu caráter de alternativa. (...) portanto, todo monismo pós-dualista implica em uma decisão por um lado ou por outro; isto e´, ele próprio é de natureza alternativa, e por conseguinte particular, e se defronta com o seu oposto com a possibilidade que ficou excluída. [pp. 25-26]

4.1.12 (...) Com o fato da morte, foi primeiramente no corpo que se manifestou a oposição ente vida e não-vida, oposição esta que exerceu constante pressão sobre o pensamento e fez ruir o panvitalismo primitivo, provocando a divisão da imagem do ser. O mesmo acontece agora, de maneira invertida, com a unidade concreta que se manifesta na vida onde também o dualismo das duas substâncias vem a fracassar. E é mais uma vez a mesmo unidade dos dois que se transforma em escolho submerso para cada um dos sistemas alternativos oriundos do dualismo., logo que, como não pode deixar de ser, eles busca alargar-se para ontologias integrais. [p. 28]

4.1.13 Assim o problema da vida é ao mesmo tempo um problema central da ontologia, e o problema que continua intranqüilas as modernas posições antitéticas no materialismo e no idealismo. (...) Como expressão desta situação teórica pós-dualista, a variante do materialismo é manifestamente a mais séria e mais interessante da ontologia moderna, em comparação com o idealismo. Pois em sua esfera objetiva ele realmente permite o encontro com todos os outros corpos, também com os corpos vivos, e ao ser obrigado a submetê-lo também aos seus princípios ele se expõe à prova real ontológica e à possibilidade do fracasso. (...) O idealismo consegue evitar esse problema; do ponto de vista da consciência pura, por mais artificial que este seja, ele consegue sempre interpretar o corpo com todos os demais corpos, como “idéia” de um “fenômeno” exterior dentre de seu horizonte objetivo, e assim negar a corporalidade própria: com isto evita o problema da vida, da mesma forma que o da morte.[p. 29]

4.1.14 A antítese dualista não leva ao incremento dos traços vitais ao concentrar-se em um dos lados, mas sim à morte de ambos os lados, por terem sido separados do seu centro vivo. E esta morte se vinga pelo fato de que – mesmo sem falar do enigma da vida – para a interpretação da regularidade externa nos movimentos da matéria a imagem de sua causalidade por uma força atuante não encontra mais nenhuma justificativa verdadeira em nada do que acontece diretamente [p. 31]

4.1.15 Lembramos aqui a resposta dada por Kant ao ceticismo de Hume, resposta que pretende apresentar uma razão de direito apriorista deste tipo. Mas também a solução transcendental do problema, que mesmo assim pretende fundamentar a causalidade e sua validade objetiva a partir unicamente da consciência pura, não pode fugir à verdade de que o concreto não pode ser deduzido de uma de suas abstrações. Seu êxito depende essencialmente, entre outras coisas, de se provar que a causalidade é realmente um conceito do entendimento puro. [p. 31]

4.1.16 (...) Sempre permanece em aberto a questão de saber se a vida representa uma complicação quantitativa na ordenação da matéria, e se sua liberdade ou teleologia é apenas um apagamento aparente de sua clara e simples determinação por crescimento de complicação (...); ou se, ao invés, a matéria “morta” deve ser entendida como um modo deficitário das propriedades da vida sensitiva, como restrição da mesma ao mínimo de um estado germinal infinitesimal – e neste caso o seu determinismo seria uma liberdade adormecida, ainda não despertada. [p. 33]

4.1.17 (...) Qualquer que seja no entanto a causalidade, nisto a crítica de Hume estava certa: ela não ocorre em uma ato de contemplar, e o nexo entre os dados não é ele mesmo um dado, um conteúdo de contemplação. Força, de fato, não é um “dado” mas sim um “ato”, presente no ser humano em seu esforço. Mas esforço não é contemplação – e muito menos uma forma de síntese da contemplação. Porém a objetividade do pensar está ligada à contemplação, e assim não pode atingir o que nela não está contido. [p. 33]

4.2 CAPÍTULO I – PERCEPÇÃO, CAUSALIDADE E TELEOLOGIA.

4.2.1 Hume mostrou que a “causação” não está presente entre os conteúdos da percepção dos sentidos, e este resultado é irrefutável enquanto com ele considerarmos a “percepção” como mera receptividade que registra os dados fornecidos pelos sentidos. Assim também o entendeu Kant, ao assumir a descoberta negativa de Hume. E mais ainda quando se sustenta como o fizeram tanto Hume como Kant, que tal percepção passiva é a única maneira pela qual o mundo exterior é “dado” originalmente – de modo que só por meio de nossa receptividade nós próprios temos conhecimento de nossa atividade corporal, cujas seqüências de dados precisam primeiro ser interpretadas no sentido da ação -, então a causalidade de fato tem que ser um acréscimo mental ao material que primariamente nos é dado; e a diferença entre as teorias refere-se apenas à fonte e à natureza deste acréscimo. Hume a enxergou no hábito da associação (ela própria passiva por parte do sujeito), e Kant na estruturação pelo entendimento (que, embora “ativa”, está em estrita imanência mental). Mas nenhuma das duas teorias positivas consegue fechar a lacuna aberta pelo bom êxito do argumento negativo. [pp. 35-36]

4.2.2 (...) A intenção (...) não é fundamentar o caráter efetivo da causalidade como tal, nem sua experiência isolada e contingente, mas sim a validade de uma lei universal da causalidade para experiência como um todo. Então o que se deveria provar (...) é se o argumento consegue uma forma válida. Qualquer que seja a resposta, uma lei referente à experiência jamais pode falar pela própria experiência primária. [pp. 37-38]

4.2.3 (...) Uma outra doutrina pretende substituir a dinâmica interior par exterior, a origem ilegítima pela legítima: ambas pressupondo que neste assunto a “percepção” se cala (o que ela realmente faz quando isola o monopólio cognitivo que lhe é imposto), e que por isso não existe nenhum conhecimento direto da força, transitividade e ligação dinâmica das coisas. [p. 38]

4.2.4 (...) O mundo, em vez de se apresentar com clareza, também pode introduzir-se dinamicamente no testemunho que nos dá de si mesmo e com sua causalidade atropelar a percepção. (...) No caso do sentido da visão o rendimento é perfeito, graças às propriedades dinâmicas da luz e às ordens de grandeza relativa envolvidas. A aparente inatividade e auto-fechamento do objeto visto corresponde à aparente inatividade e fechamento de quem contempla (...). Sua completa eliminação do produto da imaginação, que no perder sai ganhando mas que nem por isso deixa de perder, introduz um elemento de abstração – a abstração da imagem – na constituição interna da percepção sensível, e com isso no conhecimento do objeto como tal. [p. 40]

4.2.5 (...) O entendimento em si, quando os desnudados objetos dos sentidos lhe são entregues unicamente para serem tratados, não pode produzir aquele caráter, nem por seus próprios meios de ligação criar um substitutivo para eles (aqui Hume tinha razão, e não Kant). Mas ao desfrutar da vantagem da liberdade da teoria -, ele precisa aceitar também a desvantagem na relação objeto-objeto. [p. 41]

4.2.6 (...) No tocante a relação objeto-objeto, o problema de Hume da conexão necessária (...) é um bom exemplo epistemológico. (...) Libertar o “ser” deste cativeiro na “substância” é um dos principais objetivos da ontologia contemporânea. Além disso, o fato de a “força” não ter lugar no sistema (um aspecto do mencionado cativeiro) levanta a questão do antropoformismo, cujo banimento do conhecimento do mundo exterior foi admitido com demasiada naturalidade para a epistemologia da ciência. [p. 42]

4.2.7 (...) jamais se afirmou que “causa final” seja um conceito estranho ou abstruso, ou mesmo “antinatural”. Pelo contrário, não existe coisa que seja mais natural ao espírito humano ou mais familiar à experiência corriqueira dos homens: e o que na nova atitude científica falava contra ela era exatamente isto. (...) Sob o título da res extensa, a realidade exterior foi totalmente desvinculada do mundo interior do pensamento, passando depois a constituir um campo auto-suficiente para a aplicação universal da análise matemática e mecânica: a própria idéia de “objeto” teve que passar por uma transformação através do expurgo dualista. (...) “Objetividade”, por conseguinte, passa a ser a elaboração dos dados exteriores dos sentidos segundo suas propriedades extensionais. (...) Nesta constelação dualista nós nos deparamos com a “natureza do ser humano” como uma fonte de impurezas para a “filosofia” (isto é, para a ciência natural), e a objeção levantada contra a explicação final é o fato de ela ser antropomórfica. [pp. 45-46]

4.2.8 A ciência deixou-se levar pela inclinação da filosofia ao ceticismo. (...) Neste movimento manifesta-se, pois, uma dialética profunda. (...) quando o dualismo sai de sena e a res cogitans, fundamentada no orgânico, passa a ser ela própria parte e produto da natureza unificada, o fato de Bacon atribuir as causas finais à “natureza do ser humano” deixa de provocar aquele efeito eliminador que existia na configuração dualista. (...) por fim, a teoria da evolução, agora uma parte inseparável do monismo moderno, dilui os derradeiros vestígios da linha divisória em que se baseava todo o argumento do contraste entre a “natureza” e o “ser humano”. [pp. 47-48]

4.3 CAPÍTULO III – ASPECTOS FILOSÓFICOS DO DARWINISMO

4.3.1 Desde o começo da especulação humana as perguntas pela origem sempre acompanharam as interrogações mais amplas acerca da natureza e das coisas, e nisto a filosofia mecanicista não constituiu exceção. (...) De todas as esferas do ser, foi o mundo dos seres vivos que por mais tempo resistiu a esta idéia da origem, só no século 19 a teoria da evolução conseguindo subordinar a vida ao esquema geral de tratamento. [pp.50/52]

4.3.2 A “evolução”, no sentido moderno da palavra, permitiu conferir maior confiabilidade à matéria no surgimento do reino vivo, com isto permitindo que o monismo materialista da ciência natural desse um passo decisivo. Isto ela conseguiu ao abandonar o significado original da palavra “evolução”, desvinculando-a do processo de crescimento dos organismos individuais. (...) uma vez que a vida exista, ela vai progressivamente determinando suas próprias condições para o jogo das variações mecânicas, e com isto as probabilidades passam a ser efetivamente mais favoráveis do que no caso dos macacos, que a cada momento precisam começar de novo, sem se beneficiarem de suas realizações anteriores. [pp. 53-54]

4.3.3 Efetivamente o evolucionismo do século 19, que realizou a revolução copernicana na ontologia, é um predecessor apócrifo (...) do atual existencialismo. O encontro deste com o “nada” surge da negação da essência, que impediu o retorno a uma “natureza” ideal do ser humano, assim como pôde na Antiguidade ser encontrada na definição clássica do ser humano através da razão (...), ou na definição bíblica com a criação do ser humano à imagem de Deus. Com a queda da idéia da criação esta “imagem” sumiu, juntamente com o original; e a razão ficou reduzida a um meio entre outros, avaliado pelo seu rendimento instrumental na luta pela sobrevivência; por sua aptidão puramente formal, no prolongamento da astúcia animal, a razão não impõe norma, sendo avaliada por padrões que independem de sua autoridade. [pp. 57-58]

4.3.4 De acordo com as categorias do evolucionismo, a mesma lógica vale para a vida. A combinação de necessidade e contingência pode ser reconhecida em todos os aspectos da questão (...). a) Um destes aspectos foi a inversão da primitiva crença na superioridade das origens (...). b) Outro aspecto foi a inversão da relação tradicionalmente admitida entre estrutura preestabelecida e função dela dependente, e também aqui nós nos deparamos com a propriedade da contingência (...). c) Uma terceira característica que aponta para a hegemonia de “necessidade e contingência”, nós a encontramos na insistência sobre o conceito de ambiente. [p. 60]

4.3.5 (...) ao combinar o darwinismo com a genética moderna, combinação que constitui o cerne da teoria atual, um novo modelo dualista substitui na interpretação da vida todo dualismo anterior. (...) ao libertar-se deste modo da necessidade dualista de contar com um princípio criador distinto do criado, o monismo, que desta maneira chegava à hegemonia, onerou a matéria, e agora somente a matéria, com todo o peso de uma tarefa de que o dualismo a havia deixado livre: a de, além das organizações físicas, dar conta da origem do espírito. [pp. 63-64]

4.3.6 O dualismo cartesiano levou a especulação sobre a natureza da vida a um beco sem saída: quando mais compreensível, de acordo com os princípios da mecânica, tornou-se, na res extensa a relação entre estrutura e funcionamento – tanto mais perdeu-se na bifurcação a conexão entre estrutura-mais-função e sentimento ou experiência (modo de ser da res cogitans), e com isto o próprio fato da vida se torna incompreensível no exato momento em que a explicação de sua realização corporal aparece como garantia. [p. 69]

4.4 CAPÍTULO IV – HARMONIA, EQUILÍBRIO E DEVIR

4.4.1 Formalmente, o sentido de “sistema” é determinado pelo conceito de conjunto, que pressupõe uma pluralidade que chegou a estar junta para relação do conjunto, ou que não pode existir de outra maneira a não ser nesta relação. Sistema, portanto, é necessariamente algo múltiplo, mas além disto o sentido de conjunto está em que o múltiplo possui um princípio eficaz de sua unidade. (...) Com o tema “sistema” nós nos encontramos assim no terreno dos problemas ontológicos clássicos do uno e do múltiplo, e da permanência na transformação. [p. 78]

4.4.2 O devir é (...) um decréscimo de casualidade e indeterminação (para evitar a expressão “liberdade”) – por conseguinte um decréscimo progressivo de sua própria condição de possibilidade. (...) Mas dois aspectos deste quadro hipotético do sentido do sistema e do seu devir, tirados da mecânica (“clássica”) da ontologia moderna, são de particular importância para saber se o conceito de sistema é adequado para abordar os fatos vitais. Um deles diz respeito ao conceito de devir, o outro ao de ser. Os dois podem ser tratados em conjunto, com relação entre ser e devir. No que se refere ao devir, temos que ver com clareza que a ocasião para o novo está presente na mesma medida em que o desequilíbrio, e que o aproveitar dessa ocasião (...) nasce unicamente do dinamismo do desequilíbrio. (...) Devir é uma condição necessária e limitadora, não um caráter interno do ser; e a razão permanente desta condição é a definitiva limitabilidade do substrato indiferente que se chama matéria. [pp. 78-79]

4.4.3 A primeira aplicação moderna do conceito de sistema aos corpos vivos deve ser vista na teoria de Descartes do organismo animal como uma máquina ou um autômato natural, superior às criações da arte mecânica unicamente pela multiplicidade e pela pequenez de suas partes. (...) Descartes procurou explicá-la por meio de uma teoria dos reflexos (...), que para explicar a “aprendizagem” sem recorrer à teologia chega a antecipar o conceito de reflexos condicionados, isto é, de conexões senso-motoras modificadas mecanicamente por estímulos externos. Não obstante, concepção cartesiana repousa essencialmente sobre o modelo clássico do mecanismo como sistema individualmente fechado e isolável. O que é significativo em relação a doutrinas mais antigas é que este mecanismo pode “viver” sem “alma”, isto é, pode – e tem que – exercer todas as funções ligadas ao processo vital graças à disposição de suas partes. O efeito global destas funções é a autoconservação, e os sistemas foram construídos para produzirem este efeito. [p. 83]

4.4.4 (...) A conservação do sistema depende aqui de sua atividade, não é simplesmente realizada com ela. A atividade de autoconservar-se através da renovação dos estados de equilibro, que a dependência do ambiente não permite que se prolongue – conservação, pois, como produção contínua -, é o conteúdo do funcionamento do sistema, e com isto o sentido de sua existência. [p. 85]

4.5 CAPÍTULO V – DEUS É UM MATEMÁTICO?

4.5.1 (...) os diferentes sentidos em que falamos de uma natureza “matemática” não podem deixar de afetar também a idéia de um criador matemático. (...) A alma humana é o único ser no mundo – mas não do mundo – que foi criado por Deus, ou mesmo que foi criado de Deus, e que por isso é em certo sentido divina, ao passo que céus e terra (...) são obra de suas mãos, e não sua imagem. A separação essencial entre Deus e o mundo repete-se ou reflete-se na separação essencial entre espírito e natureza. A natureza, criada do nada, carece de espírito e executa cegamente a vontade de Deus, por quem unicamente ela subsiste. Desta forma tornou-se metafisicamente possível a idéia de uma natureza sem espírito, ou “cega”, que não obstante comporta-se com lei – isto é, contém uma ordem inteligível sem que possua entendimento [pp. 92-93-94]

4.5.2 (...) Deus é um puro matemático? (...) Começamos a suspeitar que o “material” que o Grande Arquiteto teve que utilizar para concretizar suas idéias possuía uma natureza própria que lhe era desconhecida e que não estava prevista em seu plano – propriedades que no curso do desenvolvimento mecânico encontraram ocasião para realizar alguma coisa das possibilidades ocultas da substância original. Nós mesmos somos um exemplo disso. Seduzido desta forma para a construção de uma multiplicidade que possui sua tendência própria, o matemático não sabe o que está criando. Não tem olhos que vejam para ele, não tem ouvidos que ouçam. Assemelha-se antes ao demiurgo dos gnósticos, que criou o mundo sem saber o que estava fazendo, como o demiurgo de Platão, que criou o mundo a partir da totalidade do saber. [pp. 97/116]

4.5.3 (...) uma biologia filosófica, sem a qual não pode por um lado existir uma filosofia do ser humano, e por outro uma filosofia da natureza, e um novo exame de causa sem a qual estas três não podem ser colocadas sob o mesmo teto. Mas sobre o contencioso desta tentativa (...) “a partir do testemunho imanente de sua criação”, concluo que o criador deve ser diferente daquilo que o metafísico Jeans entende – na mesma medida em que a criação, isto é, todo quanto existe, é diferente daquilo que o físico matemático Jeans imagina. Por isso nossa resposta final à pergunta “Deus é um matemático?” – ou seja, ele é essencial e simplesmente um matemático, mesmo apenas com referência ao universo material – é um decidido “não”. [pp. 116-117]

4.6 CAPÍTULO VI – MOVIMENTO E SENSAÇÃO

4.6.1 Três características distinguem a vida do animal da vida da planta: mobilidade, percepção, sensação. A ligação necessária entre movimento e percepção é evidente, já tendo sido tratada por Aristóteles; a ligação necessária entre movimento e sensação (emoção) necessita de um estudo mais minucioso; este estudo irá mostrar que as três capacidades são a manifestação de um princípio comum. [pp. 123-124]

4.6.2 A locomoção, o animal, se volta para um objeto ou dele se afasta, quer dizer, ou é perseguição ou é fuga. Uma perseguição mais prolongada, onde o animal contende suas forças motoras com as da presa que busca alcançar, evidencia não apenas capacidades motoras e sensoriais desenvolvidas mais também pronunciadas forças de sentimento. [p. 125]

4.6.3 Sensibilidade, sentimento e mobilidade são diferentes manifestações deste princípio da mediatez – portanto do essencial “distanciamento” da existência animal. Se o sentimento envolve a distância entre necessidade e satisfação, então ele tem sua razão de ser na original separação entre sujeito e objeto, e coincide com a situação da percepção e da capacidade de movimento, que envolvem também o elemento da distância. “Distância” em todos estes aspectos, envolve a separação sujeito-objeto. [p. 126]

4.6.4 A separação entre relação direta e relação mediata com o ambiente coincide com a separação entre planta e animal, devendo pois coincidir com a diferença entre suas formas de metabolismo. (...) Com as raízes a planta “inventou” o meio eficiente para aproveitar as vantagens inerentes a um organismo dotado da fotossíntese. Possuindo-a, a planta está libertada da necessidade (mas também privada da possibilidade) do movimento [pp. 127-128]

4.6.5 O caráter mediato da existência animal se encontra na raiz de mobilidade, percepção e sentimento. Ele produz o indivíduo isolado que se defronta com o mundo. Mundo este que ao mesmo tempo convidativo e ameaçador. Ele contém as coisas de que o animal necessita, e este tem que pôr-se a caminho e procurá-las. (...) A sobrevivência passa a ser uma questão de comportamento em determinadas ações, em vez de estar garantida por um funcionamento orgânico bem adaptado. (...) o caráter indireto da existência animal disponibiliza em sua vigilância as possibilidades gêmeas do prazer e da dor, ambas casadas com o esforço. [pp. 129-130]

4.6.6 Em última análise é o fato que decide a disputa entre animal e planta. A constituição original do organismo, mesmo no estágio unicelular, expressa a individualidade como ousadia da liberdade com que uma forma mantém sua identidade ao longo da mudança da matéria. A liberdade é compensada dialeticamente pela necessidade, a autonomia pela dependência. (...) O fosso aberto entre sujeito e objeto, que abre a percepção à distância e que se reflete na exacerbação de desejo e medo, de satisfação e decepção, de prazer e dor, jamais deve ser fechado. Mas a liberdade da vida, em sua crescente ampliação, encontrou espaço para todas as formas de relação – perceptiva, ativa e sensitiva – que justificam o fosso no momento de transpô-lo, e que através de rodeios reconquistam a unidade perdida. [p. 131]

4.7 CIBERNÉTICA E FINALIDADE: UMA CRÍTICA

4.7.1 O modelo cibernético reduz a natureza animal aos dois fatores da percepção do movimento, enquanto na realidade ela é composta pela tríade constituída pela percepção, movimento e sentimento. Mais fundamental do que as outras duas capacidades, o sentimento, que estabelece a ligação mútua entre as duas, é a tradução animal do impulso básico que já se encontra em ação no plano pré-animal indiferenciado da constante realização do metabolismo. (...) Para o instinto da autoconservação não existe nenhuma analogia na máquina, unicamente, como antíteses da autoconservação, a entropia da morte. [p. 149]

4.7.2 De acordo com a cibernética, a sociedade é uma rede de comunicação para transmissão, intercâmbio e armazenamento de informações, e é isto que sustenta. A respeito da sociedade jamais foi apresentado conceito mais vazio. (...) O agir intencional, seja ele individual ou social, por si mesmo está voltado para o bem. De acordo com um ponto de vista antigo, a escala dos bens menores ou maiores que se tornam objeto do desejo, e com isto são capazes de motivar o comportamento, culmina em um bem mais elevado, o summum bonum. No caso do ser humano isto poderia perfeitamente – num sentido muito distante do cibernético, encontrar-se em estado de “formação”. [pp. 149-150]

4.7.3 Materialistas, behavioristas e cibernéticos efetivamente assumem a posição cartesiana, sem no entanto arcarem com a carga metafísica de sou doutrina das duas substâncias. (...) A posição metafísica é a do materialismo, que como doutrina geral do ser tem que enfrentar o problema que se manifesta com o fato da vida consciente. (...) O aspecto relevando do “epifenomenalismo” consiste em suas teses negativas ocultas. Sua tese manifesta e positiva, de que a matéria seria responsável pelo espírito, é apresentada sem qualquer tentativa de mostrar como é possível se harmonizar esta realização com as propriedades conhecidas da matéria. [pp. 150-151]

4.7.4 Um ponto facilmente esquecido é de que a “matéria” que seja obrigada a prestar contas pelo espírito não é mais a mesma matéria com a que foi assumida pela ciência no expurgo dualista. O materialismo herdou a herança do dualismo, sem perceber com clareza que a herança que percebia estava onerada por uma obrigação que ele jamais seria capaz de pagar com seus recursos próprios: a obrigação de também teoricamente explicar aqueles fenômenos que antes haviam sido contestados à metade desaparecida da possessão dualista. (...) Mas não deixamos de conceder pelo menos uma virtude ao epifenomenalismo: ele desfaz-se do conceito absurdo de um determinismo intramental e faz o determinismo voltar ao lugar que lhe é próprio, isto é, o único onde ele tem sentido. – o reino da matéria. [pp. 152-153]

4.7.5 No fim, com o aparecimento do monismo materialista, foi possível confiar tranquilamente todo o problema do determinismo à onipotente matéria, onde ele cessou de ser um problema psicológico. Constitui um mérito do epifenomenalismo ele haver percebido a verdade de que o determinismo no sentido científico só pode significar uma descrição da matéria, não encontrando por isso nenhuma aplicação fora dela. Portanto, se existir determinação total (o que evidentemente ninguém ainda provou), então o espírito só pode ser um epifenômeno da matéria, sem causalidade própria, nem exterior nem interior. [p. 157]

4.7.6 (...) sua completa prescindibilidade para a série das ocorrências transforma sua vã presença em um enigma que provoca mais vexame do que qualquer outro de que o dualismo tenha desistido, fornecendo ainda por cima um comentário mefistofélico ao provérbio de que a natureza não faz nada em vão. De fato, admitir esta prescindibilidade, que equivale a uma acusação de logro, significa atribuir tranquilamente à natureza o papel de um “Deus mentiroso”, uma idéia cujo caráter alarmante levou Descartes a confiantemente buscar refúgio em um Deus bondoso. (...) Dessa forma a tentativa não apenas deixa de explicar a si mesma e passa ser inexplicável de acordo com seus próprios princípios, mas com a desvalorização epifenomenalista ela nega valor aos seus próprios resultados, negando ao pensamento em geral toda validez possível, por considerá-lo essencialmente alheio a todo pensar. É o cretense afirmando que todos os cretenses são mentirosos. [pp. 157-158]

4.8 A NOBREZA DA VISÃO

4.8.1 Desde os dias da filosofia grega, o olho tem sido celebrado como o sentido mais excelente. A mais nobre das atividades do espírito, a theoria, é descrita em metáforas tiradas predominantemente da esfera visual. (...) O sentido da visão não apenas foi o preferido para fornecer as analogias para a superestrutura intelectual, mas serviu também em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para os outros sentidos. Mas este sentido é de fato muito especial. Por si só ele é incompleto: para exercer seu ofício de reconhecer precisa ser completado por outros sentidos e funções; suas maiores vantagens são também suas mais importantes fraquezas. (...) Esta distinção única da visão consiste naquilo que por antecipação nós gostamos de chamar de imagem, palavra que implica três características: 1) simultaneidade na apresentação de uma variedade, 2) neutralização da causa de afecção do sentido, 3) distância no sentido espacial e espiritual. [pp. 159-160]

4.8.2 Com o ouvido a situação é clara: de acordo com sua própria natureza, o som só pode “dar” uma realidade dinâmica, jamais uma realidade estática. (...) nós compreendemos por que para nossos ouvidos nós não temos coisa alguma que corresponda às pálpebras dos olhos. Não se sabe quando um som irá acontecer. Quando ele acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente, isto é, uma modificação no ambiente, e não de uma existência constante: e como uma ocorrência, isto é, uma modificação viva, os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade. (...) A razão mais profunda para esta contingência fundamental do sentido da audição é o fato de ele estar relacionado ao acontecer, e não ao existir, ao vir-a-ser e não ao ser. Desta forma o ouvir, ligado à sucessão e não oferecendo nenhuma variedade simultânea coordenada de objetos, é inferior ao ver no que se refere à liberdade que ele garante para quem o possui. [pp.160-161/163]

4.8.3 (...) Efetivamente a visão, mais do que qualquer outro sentido, nega a experiência da causalidade: causalidade não é um dado visual. (...) a visão não é o caso primário e sim o caso mais sublime da percepção sensorial, e repousa sobre a infra-estrutura de funções elementares nas quais o intercâmbio com o mundo é sustentado em formas mais concretas e palpáveis. (...) O testemunho da visão não falsifica a realidade ao ser completado pelo testemunho das outras camadas da experiência, sobretudo da capacidade de movimento e do sentido do tato; quando rejeita orgulhosa suas exigências, sua verdade se torna estéril. [pp. 172-173]

4.9 CAPÍTULO IX – HOMO PICTOR: DA LIBERDADE DA IMAGEM

4.9.1 O “humano” tem que designar então alguma coisa que justifique a atribuição deste nome, por mais extremas que sejam as diferenças físicas. Com isto é levantada a pergunta pelos traços, isto é, pelos meios de reconhecimento, e se possível por um meio de reconhecimento privilegiado, que ateste com precisão a igualdade essencial do ser, ou que forneça a mesma possibilidade de estabelecer a diferença em relação ao animal, não importando qual seja a construção orgânica. (...) A linguagem é certamente o fenômeno humanamente mais constitutivo e central, mas em sua variedade é também o mais difícil de ser apreendido, e também o que tem sua interpretação filosófica bem mais discutida e onerada. (...) Maior esperança de um acordo preliminar existe sobre o que é uma imagem do que sobre o que é uma palavra. De fato, uma compreensão da capacidade da imagem, que é uma capacidade mais simples, pode contribuir para a compreensão do problema muito mais complexo da fala. [pp. 181-182]

4.9.2 Para nos convencermos espontaneamente de que nenhum mero animal seria capaz nem haveria de produzir uma imagem, basta em primeiro lugar a ausência de utilidade de toda mera representação. (...) a representação imagética apropria-se do objeto de uma nova maneira não-prática, e precisamente este fato, de o interesse nele poder ser inerente ao seu eidos, atesta uma relação nova com o objeto. [pp. 182-183]

4.9.3 (...) a imagem precisa distinguir-se de seu suporte físico, e o objeto representado distinguir-se de ambos. Com esta dupla distinção, a semelhança da imagem pode ser percebida como “mera semelhança”. Através da semelhança o objeto percebido diretamente é apreendido não como ele mesmo, mas sim como representando um outro. Ele só se encontra aí para representar um outro, e este outro não é mais do que representado, de modo que paradoxalmente o membro intermediário, ou o eidos como tal, passa a ser o objeto real da apreensão. (...) Em nossa busca pelas condições da possibilidade de fazer imagens nós fomos levados, assim, da capacidade de perceber a semelhança para a capacidade mais fundamental de separar o eidos da existência, ou a forma da matéria. [p. 190]

4.9.4 (...) Eidos, isto é, “fenômeno”, “aparência”, é objeto dos sentidos, mas não é objeto inteiro dos sentidos. Na percepção, o objeto exterior é apreendido não apenas como algo que é “assim”, mas também como algo que está “aí”. (...) cada vista representa igualmente o objeto de maneira “simbólica”, embora como símbolo uma possa ser superior à outra e gozar da preferência para representar o objeto (...). [pp 191-192]

4.9.5 (...) a mesma coisa que em nosso exemplo é realizado pela fala (ligada ou a um apontar direto para o objeto, ou a um apelo à memória) também é realizado essencialmente através do desenhar, do reconhecer, do admitir ou do rejeitar uma imagem representativa, e esta circunstância permite-nos reconhecer que o reino da palavra não é o lugar exclusivo e necessário do fenômeno da verdade. A representação imagética, encontrando-se mais próxima do mundo da percepção do que o simbolismo abstrato da linguagem, e menos do que esta tendo a ver com os objetivos práticos da comunicação, é um exercício fundamental do empenho humano pela verdade no que se refere ao mundo visível. Todo retratar de coisas preserva delas um conhecimento, caindo também sob os critérios do conhecimento. [p. 204]

4.10 TRANSIÇÃO – Da filosofia do organismo à filosofia do ser humano

4.10.1 No refletir-se sobre o eu, a divisão sujeito-objeto, que teve início na evolução animal, atinge sua forma mais extrema. Ela estende-se agora até o centro da vida sensitiva, que desta forma torna-se dividida em si mesma. Só através da distância incomensurável do ser-objeto-de si-próprio é que o ser humano pode-se “possuir”. Mas ele se possui, ao passo que animal algum se possui a si próprio. (...) Como a satisfação humana difere da animal e a ultrapassa de longe na extensão das possibilidades, o mesmo pode-se dizer do sofrimento humano, embora o ser humano também participe da escala do sentir animal. Mas só o ser humano é capaz de ser feliz e infeliz, graças à medida do seu ser em padrões que não se restringem à situação imediata. (...) O suicídio, este privilégio exclusivo do ser humano, demonstra o grau extremo em que o ser humano pode tornar-se objeto de si mesmo. [p. 209]

4.10.2 Mas a busca da essência do ser humano tem que ser encaminhada através dos encontros do ser humano com o ser. Estes encontros não apenas fazer aparecer a essência do ser humano, mas na verdade eles a constroem, porque neles ela se decide em cada momento. A própria capacidade do encontro é a essência básica do ser humano: esta é, portanto, a liberdade, e seu lugar na história, que por sua vez só é possível através daquela essência básica trans-histórica do sujeito.
Toda imagem da realidade surgida do encontro histórico inclui uma imagem do eu, de conformidade com ela o ser humano existe enquanto a imagem for a sua verdade. Mas a possibilidade da história, colocada no ser humano – precisamente a sua liberdade -, não é ela mesma histórica, e sim ontológica; e uma vez descoberta, ela mesma passa a ser o fato central da evidência de onde toda ontologia se alimenta. [pp. 209-210]

4.11 CAPÍTULO X – DO USO PRÁTICO DA TEORIA

4.11.1 A ciência da “natureza da ação” é uma mecânica ou dinâmica da natureza. Para tal ciência, Galileu e Descartes forneceram as condições especulativas e o método da análise e sínteses. Ao criarem uma teoria com potencial tecnológico imanente, efetivamente eles puseram em marcha àquela fusão de teoria e prática com que Bacon sonhava. Antes de dizer algo mais sobre a espécie de teoria que se presta à aplicação técnica, ou mesmo que está intimamente orientada para este espécie de uso, é necessário se dizer alguma coisa sobre o uso. [p. 213]

4.11.2 (...) a moderna teoria não se basta a si mesma como fonte da qualidade humana que a torna benéfica. O fato de seus resultados poderem ser separados dela e passados adiante aos que não participaram do próprio processo teórico constitui apenas um aspecto da questão. Por sua ciência, o próprio cientista não está melhor qualificado do que os outros para reconhecer o bem da humanidade, nem mais inclinado a com ele preocupar-se. Benevolência e responsabilidade têm que ser trazidas de fora para completar o conhecimento devido à teoria. Não resulta da própria teoria. (...) a ciência é “isenta de valores” (...) os valores não são objeto da ciência, ou pelo menos não são objetos de “conhecimento científico”. [pp. 217-218]

4.11.3 “Transcendência” (...) implica objetos que estão acima do ser humano, e é com estes objetos que a teoria clássica se ocupa. A teoria moderna trata de objetos que estão abaixo do ser humano. Destes objetos não pode ser extraída relativa aos fins. A expressão “abaixo do ser humano”, que contém um juízo de valor, parece contradizer a “isenção de valores” da ciência. Mas esta liberdade significa uma neutralidade, tanto da parte dos objetos como da parte da ciência: da parte dos objetos, sua indiferença em relação ao todo valor que lhes possa ser “dado”. Mas aquilo a que por si mesmo falta valor interior submetido àquele que é o único em relação ao qual isto pode alcançar valor, e este é o ser humano e a vida humana, a única fonte e lugar de referência do valor em si. [p. 218]

4.11.4 Um uso é prático quando inclui ação exterior que provoque ou que impeça uma modificação no mundo ambiente. (Portando, a aplicação da matemática na física não é prática, mas sim teórica.) [p. 220]

4.11.5 No início do século 18, Vico proclamou o princípio de que o ser humano só pode compreender aquilo que ele próprio fez. Daí ele conclui que não é a natureza que, como criada por Deus, se opõe ao ser humano, ma sim a história, que á criatura do ser humano, que pode por este ser compreendida. (...) As maneiras quase-técnicas de produção da natureza – ou a natureza como produtos e produto dela própria – são seu único aspeto que pode ser conhecido e imitado, enquanto as essências em si não são elas próprias reconhecíveis, da qual a ciência deve fornecer uma visão para descobrir sua maneira de proceder, expressa popularmente o pensamento de que a distinção ente natural e artificial, por mais fundamental que tenha sido para a filosofia clássica, deixou de ter sentido. [p. 225]

4.11.6 Parece, portanto, que prática e teoria conjuraram-se pra nos entregar a um incessante dinamismo, e a nossa vida, privada de um presente duradouro, sempre está voltada para o futuro. (...) Essa teoria teria que assumir novamente a pergunta pelos fins, que deixa em aberto a radical indefinição do conceito de “felicidade”, e onde a ciência, entregue à aquisição dos meios para a felicidade, não tem direito a ter voz. A advertência a que a ciência seja aproveitada no interesse do ser humano, no interesse do seu maior bem, permanece vazia enquanto não foi conhecido qual é o maior bem do ser humano. [p. 230]

4.12 CAPÍTULO XI – GNOSE, EXISTENCIALISMO E NIILISMO

4.12.1 (...) O que havia começado como o encontro entre um método e uma matéria, terminou por conscientizar-me de que o existencialismo, que em si pretende explicar as estruturas básicas da existência humana (...) era ele próprio a filosofia de uma determinada situação histórica da existência humana. (...) A solução “existencialista” da gnose, tão bem justificada (...) por seu êxito hermenêutico, é um convite à sua contrapartida natural, à tentativa de uma leitura “gnóstica” do existencialismo. [p. 234]

4.12.2 Que o mundo foi criado por alguém – por um ou por vários – é em geral, no estilo mitológico, considerado como estabelecido, embora em sua gênese prevaleça de muitas maneiras uma necessidade quase impessoal de um instinto sombrio. Mas quem quer que seja o criador, o ser humano não lhe deve nenhuma devoção, nem respeito a sua obra. Sua obra, embora inclua misteriosamente o ser humano, não fornece, tampouco com sua vontade, a norma para o comportamento humano. Com um poder que se afastou profundamente da divindade, e de que o ser humano, com seu espírito só conservou de Deus o poder de agir, porém de um agir sem compreensão e sem bondade. [pp. 239-240]

4.12.3 Por isso o mundo é produto, ou mesmo a encarnação da negação do conhecimento. (...) Conhecimento, gnose, pode livrar o ser humano desta escravidão. (...) O mundo tem que ser vencido, e o mundo que se degradou em um sistema de poder só pode ser vendido pelo poder. É verdade que de forma alguma se trata de uma dominação tecnológica. Por um lado o poder do mundo é vencido pelo poder do redentor, que chega de fora e penetra na sua estrutura fechada, e por outro pelo poder do conhecimento por ele trazido, que qual instrumento mágico supera a força dos astros, e através de suas ordens abre à alma uma vereda. Por mais diferente que isto seja da moderna relação de poder entre o ser humano e a causalidade do universo, no entanto existe uma semelhança ontológica no fato formal de o confronto do poder ser a única relação que ainda resta com o todo da natureza. [pp. 240-241-242]

4.12.4 (...) devemos admitir que na gnose e no existencialismo a negação da norma objetiva foi desenvolvida em níveis teóricos muito diferentes, e que o antinomismo gnóstico nos parece primitivo quando comparado à subtileza conceitual e à clareza histórica de sua contrapartida moderna. Em um conceitual e à clareza histórica de sua contrapartida moderna. Em um caso o que foi liquidado foi a herança moral de mim anos de civilização antiga; e no outro acrescentam-se a isto dois mim anos de metafísica cristã com pano de fundo para a idéia de uma lei moral. (...) Nietzsche referiu-se à raiz da situação niilista com as palavras “Deus está morto”; com isto ele estava se referindo em primeiro lugar ao Deus cristão. Os gnósticos, caso desejassem formular de maneira parecida a base metafísica de seu niilismo, poderiam ter dito: “O Deus dos cosmos está morto”, isto é, como Deus – para nós ele deixou de ser divino e de conferir orientação à nossa vida. [p. 244]

4.12.5 (...) Para Nietzsche o sentido do niilismo é “que os supremos valores se desvalorizem”, e a razão desta desvalorização é “a visão de que não temos o menor direito de estabelecer um além ou um em-si das coisas que seja ‘divinamente’ a moral em pessoa”. Junto ao discurso da morte de Deus, esta frase confirma a constatação de Heidegger de “que, no pensamento de Nietzsche, as palavras Deus e Deus cristão são empregadas para designar o mundo supra-sensível em si. (...) “A palavra ‘Deus está morto” significa que o mundo supra-sensível não tem mais força operante”. [pp. 244-245]

4.12.6 Não se pode deixar de perceber uma diferença fundamental entre o dualismo gnóstico e o existencialista: o ser humano gnóstico foi lançado dentro de uma natureza contrária a Deus, e por isso contrária ao ser humano; o ser humano moderno, em uma natureza indiferente. Só esta última significa o vácuo absoluto, o abismo verdadeiramente sem fundo. O hostil e demoníaco sempre é ainda antropomórfico, familiar mesmo na alienação, e o contraste, como tal, confere direção à existência – uma direção negativa, na verdade, mas que tem atrás de si a sanção da transcendência negativa, de que a positividade do mundo é a contrapartida qualitativa. À natureza da ciência moderna nem sequer se confere esta qualidade antagônica, desta natureza não se pode obter nenhuma orientação. Isto torna o niilismo moderno muito mais radical e desesperado do que jamais poderia ter sido o niilismo gnóstico, com todo o seu horror ao mundo e sua revolta contra as leis do mundo. Que a natureza não se preocupe, é este o verdadeiro abismo. Que só o ser humano se preocupe, não tendo diante de si, em sua finitude, outra coisa a não ser a morte, que ele esteja só com sua contingência e com a ausência objetiva de sentido de seus projetos de sentido, é na verdade uma situação sem precedentes. [pp. 251-252]

4.13 CAPÍTULO XII – IMORTALIDADE E EXISTÊNCIA ATUAL

4.13.1 (...) o ser humano atual está pouco inclinado a aceitar pensamento da imortalidade. (...) Inicio com o mais terreno e o mais empírico conceito de imortalidade: a sobrevivência na imortalidade da fama. (...) A dimensão desta sobrevivência é a própria dimensão em que ela foi conquistada: a comunidade política. De acordo com isto, a fama imortal é permanência das honras públicas, assim como a comunidade é permanência da vida humana (...). O que esta “imortalidade” possui de seletivo – o fato de só admitir poucos e de excluir a maioria – ainda precisa ser aceito em si, se é que podemos confiar na justiça de uma tal seleção. [pp. 253-254-255]

4.13.2 Voltemo-nos, pois, ao conceito não-empírico e realmente substancial da imortalidade: a sobrevivência da pessoa em um futuro no além. (...) se deixarmos de lado o mero pavor da criatura diante da morte, recaem sob dois títulos: a justiça, e a distinção entre aparência e realidade, de que a doutrina da mera fenomenalidade do tempo é um caso particular. As duas possuem em comum o fato de atribuírem ao ser humano o status metafísico de sujeito moral, e com isto ao pertencer a uma ordem moral ou inteligível à margem do sensível. (...) Em vez de negá-la, nós reivindicamos nossa condição efêmera. Não queremos renunciar ao medo e ao orgulho do fim; insistimos, mesmo, em defrontar-nos com o nada e ter a força de conviver com ele. Assim o existencialismo, este rebento extremo do clima espiritual moderno, ou da desarmonia espiritual moderna, lança-se nas águas da mortalidade sem segurança de nenhum salva-vidas escondido. E nós, aderindo ou não aderindo à sua doutrina, como filhos do nosso tempo compartilhamos de seu espírito o suficiente para ocuparmos nossa posição solitária no tempo entre os dois nadas do antes e do depois. [pp. 256-258]

4.13.3 (...) Embora o durar sempre não seja um conceito verdadeiro, a eternidade pode ter outros significados – e ter como o temporal uma relação de que nossa experiência mortal, transcendendo seu agir no fluxo do acontecer, vez por outra dá testemunho. (...) Agir como se estivéssemos em face do fim é agir como se estivéssemos em face da eternidade – um e outro sendo então entendidos como invocação da verdade completa do eu. Mas entender o fim desta maneira significa exatamente entendê-lo sob uma luz além do tempo. [pp. 258-259]

4.13.4 Buscar (...) um conceito sustentável de imortalidade está em consonância com a atitude moderna, que nós descobrimos tão penetrada pela consciência da essencial temporalidade do nosso ser, de sua referência mais íntima co a situação finita – em que manifesta tão grande desconfiança sobre a possibilidade, ou mesmo contra o mero sentido de uma existência infinitamente prolongada. (...) Por mais questionável que tenham achado o veículo da fama, por mais errônea a associação entre mérito temporal e retribuição eterna; e por menos válido que seja também o argumento da infinita perfectibilidadde de uma pretenso direito a ela – a aspecto da justiça em si, ao contrário da conclusão inteiramente inaceitável de uma substância indestrutível, ainda faz movimentar-se em nós um sim pela dignidade transcendente atribuída à esfera da decisão e da ação. (...) Destas imagens gostaria de escolher duas: o “livro da vida” e o “retrato” transcendente. [p. 261]

4.13.5 Que pode dizer-nos o símbolo do “livro da vida”? Na tradição judaica ele significa uma espécie de grande livro celeste em que nossos nomes são registrados de acordo com nossos méritos – se possível “para a vida”, isto é, para nossa vida, a vida de cada pessoa. (...) também podemos (...) entender o conceito do livro de uma forma diferente, a saber, que ele seria preenchido não com nomes e contas mas sim com os próprios feitos. Noutras palavras, estou falando da possibilidade de que os feitos se inscrevam a si próprios no registro eterno do tempo; que, seja o que for que se pratique – para além de suas repercussões e, por fim, de seu desaparecimento no tecido causal do tempo -, para todo o futuro isto seja inserido em um reino transcendente, marcando-o segundo as leis da causa e efeito, que são diferentes das do mundo, acrescentando sempre mais coisas ao protocolo inconcluso do ser e sempre de novo adiando o tremendo balança final. [pp. 261-262]

4.13.6 Busquemos ajuda voltando-nos para a outra parábola, a da “imagem” transcendente que surge traço por traço no nosso agir temporal. Encontramo-la na literatura gnóstica, sobretudo do ciclo iraniano. (...) uma delas é a idéia do sósia celeste da pessoa da terra, de quem a alma que parte vaio ao encontro após a morte. (...) Segundo esta versão, parece que cada um tem o seu alter ego “preservado” no mundo do alto enquanto ele se esforça aqui embaixo, mais que, no tocante ao seu estado definitivo, o alter ego está entregue à sua responsabilidade: como o eu eterno da pessoa, ele cresce com as provocações e os feitos desta, e sua forma é completada por seus esforços. (...) Mas o encontro como tal significa o encerramento bem-sucedido da caminhada da terrestre da alma, culminando em uma fusão e união que completa o que por algum tempo esteve separado. [pp. 262-263]

4.13.7 Mas ao lado desta versão individual também existe uma versão coletiva do simbolismo do retrato, que relaciona nossos feitos não com uma eternidade do nosso eu particular mas sim com a perfeição do próprio eu divino. [p. 263]

4.13.8 Da metafísica, para continuarmos no mesmo estilo especulativo, resultam algumas conseqüências éticas sugeridas por meu mito. A primeiro é a importância transcendente de nosso agir, da maneira como vivemos nossa vida. Se, no sentido de nosso relato, o ser humano foi criado não tanto “à” imagem de Deus quanto “para” a imagem de Deus – se nossos currículos de vida se tornam traços na face divina, então nossa responsabilidade não é determinada unicamente por suas conseqüências no mundo, onde seu peso muitas vezes é pequeno, mas atinge uma dimensão em que a capacidade de produzir efeitos se mede por normas transcausais de natureza interna. (...) O indivíduo é por natureza temporário, não eterno; e a pessoa em particular, fiduciária mortal, tem o gozo da mesmidade durante o instante do tempo como meio através do qual a eternidade se expõe às decisões do tempo. Como acionados no contexto do vir-a-ser, isto é, como únicos e efêmeros, os eus pessoais são apostas do eterno. Assim, nas ocasiões irrepetíveis das trajetórias finitas da vida, o resultado precisa sempre de novo ser decidido. Uma duração ilimitada haveria de embotar o fio da decisão e privar de sua urgência os apelos da situação. [pp. 267-268]

4.13.9 (...) o ser humano não possui nenhum direito moral ao dom da vida eterna, nem tem direito a queixar-se de sua mortalidade. (...) Pois em si não existe nenhuma necessidade de que o mundo exista. Por que existe Algo e não Nada? – esta irrespondível pergunta da metafísica deveria preservar-nos de pressupor a existência como um axioma e depois considerar a finitude como uma marcha adquirida, ou como uma negação de seus direitos. Pelo contrário, o fato da existência é em si o mistério dos mistérios – que nosso mito tentou refletir simbolicamente. Renunciando à sua própria invulnerabilidade, a razão eterna permitiu que o mundo existisse. É a esta autonegação que toda criatura deve sua existência, como ela recebendo o que pode receber do além. [p. 268]

4.13.10 (...) O que importa (...) é salvar toda a aventura mortal em si, antes que se possa pensar em um eventual êxito ou fracasso no imortal. A ameaça ao mundo vivo por parte de nossa tecnologia, de que o fantasma da bomba atômica é apenas o aspecto mais dramático (e talvez o mais fácil de ser controlado), diz que a visão aqui desenvolvida, que em nosso lugar do universo a imagem de deus corre perigoso não pode ser enfrentado por nenhuma moralidade oculta da existência privada, só por um agir coletivo público da ação atual, e não é possível prever-se que alianças com o mal terão que ser feitas pelo bem para evitar o ainda pior, ou mesmo para impedir o inadmissível. (...) Em nossas mãos inseguras nós seguramos literalmente o futuro da aventura divina na terra, e não podemos desapontá-la, mesmo que quiséssemos desapontar-nos. [p. 269]

 

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