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sábado, 11 de janeiro de 2014

CINEMA: O Piano


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Sinopse:

Ada McGrath (Holly Hunter) é muda e usa o piano para extravasar seus sentimentos. No séc. 19, ela e sua filha Flora (Anna Paquin) são enviadas para a Nova Zelândia (ainda um tanto selvagem) para um casamento arranjado com o fazendeiro Stewart (Sam Neill). No desembarque, seu piano é deixado na praia, pois seria muito difícil carregá-lo e Stewart não compreende o quanto Ada precisa do instrumento. Já George Baines, um rústico vizinho, percebe porque o piano é tão importante quando, na praia, ouve Ada tocar. Atraído por Ada, Baines compra o piano com a intenção de conquistá-la. De maneira poética e intensa, as emoções dos personagens vão sendo reveladas: a sexualidade de Ada, a ternura de Baines, o ciúme de Stewart.

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Alguns filmes encantam pela história em si; pelos fatos vividos pelos personagens. Outros nos fascinam pela forma como os fatos são contados. "O piano" poderia ser mais uma história de amor e adultério como tantas outras. Porém, o excelente roteiro de Jane Campion vai além , nos enredando em um mundo de erotismo e mistério; submissão e revolta ; insensatez e lucidez. 

Ada é uma mulher muda que pouco se expressa ou diz de si. Inicialmente se apresenta como uma mulher submissa ao pai, ao marido e à cultura popular. Sua relação com a filha é conturbada, competitiva, e não há uma troca entre elas, não se trata de um afeto “vivo”. O piano torna-se, portanto, um refúgio, ao qual Ada sempre recorre para extravasar suas emoções. Ela é incondicionalmente apegada ao instrumento. Vive assim em um mundo particular, ilusório e estagnado. Sua vida é marcada por um grande estado de inércia, de paralisação, não há fluidez (ela está acomodada a um modo de viver e não vê possibilidades para além dele, Ada está vivendo uma ilusão). 

O contrato inicial de relação com Stewart não existiu, Ada se junta a ele resignadamente. Logo, não existe a função marido-esposa, mas apenas o papel. Em momento algum do filme, Ada e Stewart vivem de fato um casamento, ou seja, não há uma relação cultivada entre eles. Ou se há, ela não realiza trocas, não transforma, não acrescenta, apenas compete. No entanto, com George já há um contrato inicial, ele permite a Ada se expressar através dele, sem a necessidade do piano, afinal ela “quer” estar com ele e não, foi obrigada a tal. Porém, esta também não é, a princípio, uma relação saudável, pois um aparenta tentar salvar o outro de si próprio, como um mito de libertação. 

No momento em que Ada tem seu dedo arrancado ela adoece, paralisa em sua dor. Seu nível de humanização é (e foi desde de o início do filme) baixo, ela espera demais, não sabe pedir, não sabe doar ou perdoar, ela é trancada dentro de si em sua mudez. Não diz não ao marido, mas também não o perdoa. Tenta impedí-lo de vender seu piano, mas acaba se submetendo às suas ordens. Ada não passa de uma marionete que se vê como vítima do mundo, que não toma as rédeas da vida. 

Stewart ao perceber que não teria o amor de Ada, mesmo se matasse George, a manda de volta à Escócia. E mesmo neste momento ela não reage à vida, apenas acata ordens. George vem atrás dela, ela não busca por ele; ela não se questiona se deseja de fato voltar à Escócia. Em certo ponto, quando todos (Ada, Flora, George e o piano) já estão no barco para ir embora de Nova Zelândia, o piano pesa no barco e cai no mar. Com o pé amarrado ao piano (“ele vive por ela, o piano existe por ela”), Ada também é levada para dentro da água. Mas, em um impulso de vida, ela desprende seu sapato e retorna à superfície. Ela respira a vida ao ser intimada a fazer uma escolha por si mesma (não morrer junto ao piano), ninguém poderia salvá-la do afogamento, apenas ela. É o primeiro momento em que ela faz uma escolha na vida que não é a de assistir os acontecimentos pacificamente.

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Metaforicamente, no ponto em que ela deixa o piano ir, ela se desapega dele e passa a de fato construir relações verdadeiras com as pessoas (ela sai do estado de inércia no qual viva até então). Assim, Ada começa a apreender a falar, pois não conta mais com a ajuda do piano para libertar sua dor, para “ser” por ela. Ela faz uma recontratação em sua relação afetiva com George, na qual agora são parceiros (não salvadores), construindo juntos uma nova vida, produzindo um afeto vivo. Seu olhar para Flora assume o olhar e função de uma mãe, pois, em todo o filme Ada se portava como se tivesse a idade da filha e fossem apenas amigas. Enfim, Ada começa a dar passos em direção à humanização e ao “real”: volta a tocar piano (mesmo com um dedo a menos), doa-se para a filha como mãe e para George como esposa, aprende a perdoar o marido (deixa de ter ódio dele, compreende os fatos como aconteceram), abandona o “jogo do cabide” e passa a investir nela mesma. 

O aspecto visual do filme, composto por sua fotografia, também chama atenção por transmitir ao espectador a atmosfera sufocante em que os personagens demonstram estarem envoltos. As imagens escuras e carregadas parecem aumentar ainda mais a sensação de angústia crescente no desenrolar do drama. A trilha sonora, por sua vez, também constitui um episódio à parte. Talvez por ser justamente uma história que conta com um instrumento como o piano em tanto destaque, a trilha é simplesmente espetacular. Com peças compostas pelo veterano instrumentista Michael Nyman, as melodias, quase todas entoadas pelo próprio piano, causam um efeito incrível quando inseridas no filme, além de constituírem uma coletânea que pode facilmente ser apreciada separadamente.

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Enfim, eis um drama sensível e totalmente digno de ser apreciado. Com tantos pontos positivos, fica difícil não incluí-lo numa lista de filmes que todo cinéfilo deve ver.
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